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EXERCÍCIO DE ANÁLISE FORMAL

BRASÍLIA CONTEMPORÂNEA e METROPOLITANA

2020.2

Dissemos que havia, em Kubrick, uma preocupação em ser original. Mas este termo, que significa “independente”, “único”, refere-se, paradoxalmente, por sua própria raiz, a um conceito completamente oposto, o de fonte, e, logo, de tradição. Mas o paradoxo é apenas aparente. Para afirmar sua diferença, é importante ter consciência histórica, sentir-se ligado ao passado. Como as civilizações que sabem agora que são mortais, eles se veem pertencendo à cadeia do tempo. E esse reconhecimento do tempo e da evolução das formas é, sem dúvida, uma das caraterísticas da arte moderna. [...] Quando [os cineastas] finalmente se deram conta de que o cinema tinha uma história, eles perderam a inocência. [...]. [1]

Brasília Contemporânea e Metropolitana é uma atividade organizada e desenvolvida por estudantes, com apoio da equipe de professores, estagiária e monitor, sobre a produção contemporânea em Brasília, problematizada a partir de projetos residenciais construídos no território do Distrito Federal. Três pressupostos orientam sua realização. Primeiro, considera-se que a práxis e a teoria do projeto arquitetônico, na virada entre os séculos XX e XXI, mantêm estreita relação com a tradição desenvolvida ao longo do século XX. Um aprendizado adquirido desde a crise das vanguardas talvez esteja na “perda de inocência” a que se refere Michel Ciment, que leva ao reconhecimento de que, nas esferas da produção cultural, trabalha-se, necessariamente, a partir da história particular de cada campo, em diálogo com os demais.

Uma segunda consideração entende que o recurso da tradição, em seus momentos mais exemplares, não se dá por mera repetição, mas, antes, por uma reflexão crítica. Aqui buscamos como referência o trabalho de décadas do crítico e historiador Kenneth Frampton, com atividades pedagógicas de análise comparativa de obras de arquitetura, em sua maioria concentradas no século XX, posteriormente sistematizadas no livro A Genealogy of Modern Architecture, [2] que serve ainda como base para o Roteiro de Análise deste seminário, junto a outras referências. A partir de Frampton, entende-se que o conceito de invenção é inseparável da tradição, e as qualidades da obra variam de acordo com o modo com que ela transforma as tradições que são agenciadas no processo de projeto, tanto especificamente quanto genericamente. A partir de uma leitura sobre a obra de Hans George Gadamer, Frampton entende que a antecipação do futuro define o sentido que o passado tem para nós, isto é, nós fazemos a história na medida em que também somos feitos pela história. Para além destes elementos, a reflexão faz perceber que a produção arquitetônica não pode ser tratada a partir de trajetórias isoladas, devendo-se levar em conta as relações que os autores estabelecem com o legado das gerações anteriores e com seus contemporâneos.

Por fim, um terceiro pressuposto considera como expressões contemporâneas da relação entre teoria e projeto aquelas situações que promovem uma visada crítica com relação à própria tradição moderna. No sugestivo ensaio O que é o contemporâneo?, o filósofo Giorgio Agamben dá precisão ao refazer a pergunta de seu título, questionando “De quem e do que somos contemporâneos? E, antes de tudo, o que significa ser contemporâneo?”. [3] Partindo por leituras de Friedrich Nietszche, Walter Benjamin e pelo linguista Roland Barthes, Agamben entende que “O contemporâneo é o intempestivo”, ou seja, é o sujeito que não coincide perfeitamente com seu tempo, mas, neste anacronismo, que é um acerto de contas, pode ser capaz de apreendê-lo.

Sabe-se que o território brasiliense desenvolveu-se, historicamente, em um processo desigual e combinado [4] que segue presente em sua construção atual. Ao selecionar obras de escritórios em Brasília, os estudantes também devem refletir sobre sua concentração ou dispersão no Distrito Federal, na complexidade de sua condição metropolitana, para além dos contornos físicos do território. Avaliações sobre a produção recente em Brasília já apontam para uma necessária ampliação de genealogias, que se somem às dominantes do Modernismo e Brutalismo desenvolvidas no país. [5 e 6] Pelas conexões variadas que os escritórios estabelecem com redes profissionais e de formação, transitando entre camadas do local e do global, imagina-se que as análises ajudem, justamente, na ampliação do reconhecimento dessas filiações, consideradas não apenas como fonte ou origem das obras, mas como lugar de investigação de onde emergem aspectos das práticas contemporâneas. [7] Ademais, como lembra Ruth Verde Zein, o reconhecimento crítico e referenciado de obras de arquitetura, enquanto procedimento de leitura atenta, não deixa de ser considerado como um processo reflexivo em si, como o processo mesmo do projeto. [8]

Ao fincar o pé na necessidade de focar o estudo da obra arquitetônica, no saber essencialmente arquitetônico, pode parecer que se busca encontrar sua raiz, sua origem, saber da obra “em si mesma”, em sua manifestação concreta, aparentemente livre de quaisquer amarras laços e conexões. Mas de fato nem é o que se pretende, nem isso será possível de acontecer plenamente

 

[...] Nunca será possível eliminar radicalmente as “crostas” que bem ou mal se apresentam agregadas à obra, algumas veze mescladas a ela de maneira quase inextricável, embora de fato tenham sido ali justapostas ao longo do tempo por autores, usuários, comentadores, etc.. E admitindo que assim sejam o melhor a fazer é partir da compreensão desse ente complexo, e admitir que essas camadas estão presentes sempre. [...]

notas

[ 1 ]

CIMENT, Michel. Conversas com Kubrick. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

[ 2 ]

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

[ 3 ]

FRAMPTON, Kenneth. A genealogy of modern architecture. Zurique: Lars Müller, 2015.

[ 4 ]

SCHVARSBERG, Benny. A carroça ao lado do avião: o direito à cidade metropolitana em Brasília. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 19, n. 38, p. 313-334, jan./abr. 2017. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/cm/v19n38/2236-9996-cm-19-38-0313.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2021.

[ 5 ]

PALAZZO, Pedro Paulo; PEIXOTO, Elane Ribeiro. Repertórios da arquitetura recente em Brasília. Anais do X Seminário DOCOMOMO Brasil. Curitiba, 2013. Disponível em: <https://docomomo.org.br/wp-content/uploads/2016/08/ST_09.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2021.

[ 6 ]

ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Arquiteturas de Brasília. Brasília: Instituto Terceiro Setor, 2012. (Coleção Arte em Brasília: Cinco Décadas de Cultura).

[ 7 ]

MORAES, Marcos Vinicius Malheiros. Genealogia - Michel Foucault. In: ENCICLOPÉDIA DE ANTROPOLOGIA. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2018. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/conceito/genealogia-michel-foucault>. Acesso em: 15 fev. 2021.

[ 8 ]

ZEIN, Ruth Verde. Há que se ir às coisas: revendo as obras. In: ROCHA-PEIXOTO, Gustavo; BRONSTEIN, Laís; OLIVEIRA, Beatriz Santos de; LASSANCE, Guilherme (org.). Leituras em teoria da arquitetura, 3: objetos. Rio de Janeiro: Rio Books; FAPERJ, 2011. p. 204-236.

edição 2020/2 - casas analisadas

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