GLOSSÁRIO da
CONDIÇÃO CONTEMPORÂNEA
2021.2
Ilustração de João Victor Brentano e Jessica Duarte
Elane Ribeiro Peixoto
Leandro de Sousa Cruz
Ivie Martins de Oliveira
Ianna Nunes Carvalho
Aprender com o chão
BARROS, Manoel de. I. PROTOCOLO VEGETAL. [1966]. In: BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010. p. 121-126.
Conhecedor da arte de fazer listas, o poeta Manoel de Barros produziu, em seu ofício, livros de poemas que são poderosas coleções de nomes nas formas de glossário, compêndio e tratado. Em Protocolo Vegetal, de 1966, tomamos conhecimento de um homem preso que “entrara na prática do limo” (BARROS, 2010). Não se apresenta às leitoras e leitores qualquer explicação objetiva sobre o delito, mas a coleta de depoimentos e os registros do incidente apresenta-lhes o que foi encontrado, formando um inventário de cascas de cigarra a escritos em folhas de caderno, em meio a inúmeros objetos que dão suporte à expressão humana, sejam eles um livro, um retrato ou uma tela.
A elaboração de glossários na disciplina Arquitetura e Urbanismo da Atualidade vem se mostrando como um recurso pedagógico promissor, através do qual podemos refletir criticamente sobre a produção contemporânea em nosso campo de estudo e de atuação. Mesmo sem pretensões de nos adequarmos ao cânone lexicográfico, muito menos de alcançar a riqueza poética de Manoel de Barros, o material produzido por estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasilia já constitui um bom levantamento de termos que precisam de elucidação e são, ainda, um convite ao diálogo entre autores e leitores e ao exercício de como produzir explicações criativas e transformadoras dos próprios termos que buscamos entender.
Iniciamos a experiência com o Glossário de Ideias Recebidas, um inventário das ideias em trânsito na produção atual, remetendo ao "Dicionário das Ideias Feitas" (Dictionnaire des Idées Reçues) de Gustave Flaubert, em que o escritor reuniu e comentou os jargões, lugares-comuns e ideias socialmente aceitas em seu tempo (FLAUBERT, 2017). Na edição seguinte elaboramos o Glossário de Brasília, entendendo a cidade em suas dimensões moderna e contemporânea, procurando navegá-la através de suas palavras, na forma de um “guia de viagem” (TOPALOV et. al., 2014) pela história e pelo território do Distrito Federal.
Para a terceira e mais recente edição, propôs-se a elaboração de um Glossário da Condição Contemporânea, formado por termos que apresentam diferentes condições, de ordem planetária, advindas de uma mundialização sem precedentes, facilitada pela revolução informacional. Os fenômenos e aspectos analisados nesta edição se caracterizam pela adoção de orientações econômicas neoliberais, por novas formas de trabalho, pela constituição de paisagens de extração com implicações ambientais, enfim, por mundos cindidos por abismos a serem sondados. O conjunto de temas indicados para pesquisa, todos extremamente delicados, exigiram firmeza e sensibilidade por parte dos estudantes, além de um cuidado redobrado nas leituras de outros campos do conhecimento e nos possíveis trânsitos de ideias.
Propõe-se, com a atividade, indagar sobre nossos compromissos com o presente e com o futuro. À imagem do anjo da história de Walter Benjamin, atormentado pela tempestade do progresso que o impede de fechar suas asas e de reunir os fragmentos do passado (BENJAMIN, 2013), poder-se-ia contrapor as do homem-árvore e do poeta-pássaro de Manoel de Barros, não menos “destrutivos” e por isso mesmo não menos desconfiados da “marcha das coisas” (BENJAMIN, 2014), mas que aprenderam com a observação paciente daquilo que se encontra no chão, de tudo que vai se acumulando ou mesmo apodrecendo aos seus pés.
Além da produção textual, na forma de panfletos, solicitou-se às equipes que elaborassem ilustrações autorais, como uma nova camada de interpretação crítica sobre os temas analisados, utilizando-se de toda liberdade com relação ao uso de instrumentos e técnicas de representação. Os trabalhos apresentados mostram o potencial das colagens como um instrumento produtor e profanador de imagens, o que remonta às experiências das vanguardas do século passado, cujas estratégias formais permitiam, no entendimento do historiador Manfredo Tafuri, “[...] degradar as ferramentas da comunicação reduzindo-as a lugar comum, forçando-as a se refletirem no pântano agonizante do mundo da mercadoria, reduzindo-as a signos vazios e mudos [...]” (TAFURI, 1987, p. 284, tradução nossa).
A colagem digital, recurso mais empregado pelas estudantes, dá notícia sobre o estado atual de imersão na simultaneidade de imagens e de reuniões virtuais, bem como sobre a disponibilidade de meios para fazer a comunicação acontecer, apesar do distanciamento social imposto em meio à pandemia. Ainda assim, diante da premência da virtualidade, a equipe vem insistindo na disponibilização dos verbetes para impressão e em sua reunião em volumes temáticos, continentes do limo acumulado da produção contemporânea.
BARROS, Manoel de. Protocolo vegetal. [1966]. In: BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.
BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Tradução: João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2013.
BENJAMIN, Walter. Imagens de pensamento: sobre o haxixe e outras drogas. Tradução: João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2014.
FLAUBERT, Gustave. Dicionário das ideias feitas. In: FLAUBERT, Gustave. Bouvard e Pécuchet. Tradução: Marina Appenzeller. 2. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2017. p. 365-382.
TAFURI, Manfredo. The sphere and the labyrinth: avant-gardes and architecture from Piranesi to the 1970s. Tradução: Pellegrino d’Acierno; Robert Connolly. Cambridge; Londres: The MIT Press, 1987.
TOPALOV, Christian et. al. (org.). A aventura das palavras da cidade, através dos tempos, das línguas e das sociedades = La aventura de las palabras de la ciudad, a través de los tiempos, de los idiomas y de las sociedades. Tradução: Alicia Novick. São Paulo: Romano Guerra, 2014. (Coleção RG bolso, 9).