glossário
ACUPUNTURA URBANA
Acupuntura Urbana na Comuna 13 em Medelim, na Colômbia – colagem das autoras.
Sempre tive a ilusão e a esperança de que, com uma picada de agulha, seria possível curar doenças. O princípio de recuperar a energia de um ponto doente ou cansado por meio de um simples toque tem a ver com a revitalização deste ponto e da área ao seu redor.
[...]
Sabemos que o planejamento é um processo. Por melhor que seja, não consegue gerar transformações imediatas. Quase sempre é uma centelha que inicia uma ação e a subsequente propagação desta ação. É o que chamo de uma boa acupuntura. Uma verdadeira acupuntura urbana.
Jaime Lerner, Acupuntura Urbana, 2011 [2003]. [ p. 7-8 ]
Beatriz Versiani Ponce Lopes
Laura Freitas Castro
[ jun. 2021 ]
remissivos
Histórico | O termo “acupuntura urbana” foi criado ao final dos anos 1990, como conceito de um projeto urbano para a cidade de Antuérpia, na Bélgica (SHIEH, 2006), coordenado pelo arquiteto e urbanista Manuel de Solà-Morales, um dos responsáveis pela transformação urbana de Barcelona na preparação para as Olimpíadas de 1992. O termo só foi sistematizado em 2003, por outro autor, servindo de título ao livro do arquiteto e urbanista Jaime Lerner, reconhecido por sua atuação na prefeitura de Curitiba (LERNER, 2011; 2013). Considerando suas formulações iniciais, o termo surge para contestar as tendências à segregação, homogeneização e hierarquização de espaços do urbanismo moderno, além da crescente valorização dos automóveis. Seguem-se, desde então, revisões, outras publicações e obras de ambos os autores, bem como ampliações do conceito.
Lerner publica Acupuntura urbana como um diário de memórias, resultado de suas vivências viajando pelo mundo e conhecendo diversos exemplos positivos e negativos de ações que poderiam transformar as cidades. Ao questionar a espera por planejamentos urbanos que demandam tempo, o conceito de acupuntura urbana é introduzido como ações pontuais, fáceis de serem iniciadas e que podem melhorar a qualidade de vida urbana com uma reação em cadeia. O autor destaca a importância de começar de alguma forma, pois o começo tende a gerar transformações positivas na sociedade, que visualiza novas possibilidades de interagir com os espaços e agentes locais. Intervir de maneira rápida e dinâmica, muitas vezes espontânea ou até mesmo acidentalmente, pode gerar acupunturas urbanas (LERNER, 2011; 2013).
Mais adiante o termo foi sistematizado por Manuel de Solà-Morales, no conjunto de ensaios De cosas urbanas (SOLÀ-MORALES, 2008), em que a acupuntura urbana é teorizada a partir de uma abordagem mais estratégica e sistêmica. Para o autor, a identificação de um ponto sensível e de seus canais de influência é o primeiro passo para uma proposta projetual concreta e para o desenvolvimento de uma atitude metodológica para o urbanismo. Numa apreciação sobre a obra de Solà-Morales, Kenneth Frampton acrescenta a “megaforma” como uma possível estratégia de atuação da acupuntura urbana (FRAMPTON, 1999; 2015).
Uma terceira proposição vem do arquiteto finlandês Marco Casagrande (2015), que inicia sua abordagem a partir de experiências com a reabilitação ambiental das cidades de Taiwan, reunidas no artigo Urban acupuncture: Treasure Hill. Mais recentemente, com Paracity: urban acupuncture, Casagrande reanima o conceito defendendo a correção das deficiências urbanas de uma região com operações quase cirúrgicas e um número controlado de ações. Com ênfase na vegetação local e tratando a cidade como um sistema orgânico, cria a teoria da “Cidade de Terceira Geração" [Third Generation City], onde a natureza domina a arquitetura, fazendo dela uma parte da cidade orgânica. Para ele, a acupuntura urbana não é um conceito acadêmico criado por urbanistas: a população local sabe como utilizar a técnica há muitos anos e sua participação é indispensável para o desenho urbano.
Uma síntese | Apesar da definição de cada um dos percursores apresentar suas particularidades e caracteres únicos, as três perspectivas partem da analogia com a acupuntura medicinal e do princípio de olhar o tecido urbano como um organismo vivo que está sempre passando por mudanças constantes. Dessa forma, assim como a acupuntura em corpos humanos, a técnica urbana deve ser executada por meio de intervenções precisas para “curar” um ponto da cidade que tenha efeito em cadeia criando outras melhorias no seu entorno. Os principais objetivos são a ressignificação e regeneração de espaços de forma imediata, efetiva e funcional. Para alcançá-los, é fundamental prestar atenção na realidade urbana, encontrar as importâncias da cidade, observar todos os seus detalhes, resgatar sua identidade cultural, propor soluções não habituais e promover planejamento participativo e democrático. Existem oito princípios que devem ser comuns em qualquer prática de acupuntura urbana, sendo eles: ponto sensível, cenário, ato rápido, participação, educação, abordagem holística, pequena escala e criação de lugares.
Atualização do debate | Numa sistematização sobre o tema, Ana María Durán Calisto (2015) entende a acupuntura urbana como um paradigma de projeto e intervenção urbana criado como resposta às condições de pós-ocupação territorial e crescimento urbano no Sul Global. O desenvolvimento das principais concepções sobre o termo ocorreu em meio à disputa entre o Novo Urbanismo e o chamado Urbanismo da Paisagem [Landscape Urbanism], que expunham a busca pela integração entre cidade, natureza, arquitetura e infraestrutura através do projeto urbano. O Novo Urbanismo, consolidado na década de 1990, é enraizado nas críticas à cidade moderna e possui como principais princípios o estímulo de uso misto do espaço (negando o zoneamento do Modernismo), o incentivo ao uso de transporte público consciente (não incentivando a dependência de carros), a acessibilidade caminhável, a mescla social, o respeito à estrutura tradicional dos bairros (valorização dos centros históricos) e à escala urbana. O Urbanismo da Paisagem, apesar de começar a ser desenvolvido desde o Novo Urbanismo, ainda procura se consolidar no século XXI, e promove o projeto paisagístico como a melhor maneira de urbanização (em oposição à urbanização pelos edifícios). Essas duas correntes expõem a busca pela recuperação entre cidade, natureza, arquitetura e infraestrutura, na criação de novas centralidades - que podem ser geradas por Acupuntura Urbana ou algum processo de recuperação paisagística.
Concomitantemente à difusão da acupuntura urbana, desde o início dos anos 2000, ampliou-se a variedade de tecnologias digitais que permitem fazer uso mais eficiente da estrutura urbana existente, podendo ser empregadas para lidar com o processo de planejamento. Estas tecnologias vêm sendo experimentadas para impulsionar a participação cidadã em planos, projetos e tomadas de decisões. Em um experimento nas cidades de Sydney e Brisbane, na Austrália (FREDERICKS et. al., 2019), a acupuntura urbana foi aplicada por meio de intervenções que são complementadas por aplicativos digitais e físicos que forneceram novos meios e interfaces para a formação de “públicos urbanos”. Neste caso, identificou-se que a integração de ferramentas digitais conseguiu reunir um público mais amplo, atraiu participantes mais jovens e forneceu à comunidade a capacidade de se envolver ativamente no planejamento urbano, e apontou para uma possível integração do conceito de acupuntura urbana com as chamadas “cidades inteligentes”.
Remissivos | Existem também outras estratégias de desenho urbano, relacionadas à Acupuntura Urbana, como a "Megaforma", o "Planejamento Estratégico" e o "Urbanismo Ecológico". A Megaforma se apresenta como uma proposta para enfrentar as dificuldades advindas das ondas esporádicas de desenvolvimento urbano das metrópoles e megalópoles nos anos 90. Kenneth Frampton, em 1996, define os termos “megaforma” e “relevo” como instrumentos corretivos eficazes para a prática de projeto, enfatizando o caráter atribuidor de forma (predominantemente na direção lateral ou horizontal) ao trabalho, bem como a necessidade da transformação topográfica. Assim como no caso da Acupuntura Urbana, essa estratégia busca uma proliferação de relações relativamente ilimitadas que transforme a paisagem em um sentido mais genérico. O "Planejamento Estratégico" surge nos anos 1990 em oposição à desvalorização do desenho urbano na década anterior (na qual muitos projetos desenvolvidos isoladamente pelas iniciativas privadas): é um modelo de planejamento urbano que se comporta como um plano de ações, procurando solucionar problemas atuais e concentrando-se nas eventuais articulações de agentes urbanos para explorar as reais possibilidades da cidade, ao invés de se preocupar mais com a regulamentação de futuras e eventuais intervenções urbanas, como o Plano Diretor. Os projetos urbanos desenvolvidos por meio do Planejamento Estratégico evoluem de forma aberta e flexível, recusando a hierarquia do planejamento convencional. O "Urbanismo Ecológico" é dado como uma evolução do Urbanismo Paisagístico e foi muito bem recebido na América Latina, que tem sintonia com a tradição paisagística: preserva a vegetação e a integra com a vida moderna ao invés de substituí-la, buscando a recuperação de recursos (principalmente hídricos, que ao longo do tempo foram sufocados pela urbanização).
Além dos termos relacionados, uma nova variedade de Acupuntura Urbana já busca despontar atualmente: a "Acupuntura Ecológica". Essa nova estratégia é dada como a fusão entre a Acupuntura Urbana e o Urbanismo Ecológico, e busca articular os sistemas de infraestrutura com as potencialidades da localidade (similarmente à Acupuntura Urbana), também levando em conta a recuperação de recursos (assim como o Urbanismo Ecológico).
referências
BRANDÃO, Zeca. O papel do desenho urbano no planejamento estratégico: a nova postura do arquiteto no plano urbano contemporâneo. Arquitextos, São Paulo, ano 03, n. 025.04, Vitruvius, jun. 2002 Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.025/773 | Acesso em: 14 mai. 2021.
CASAGRANDE, Marco. Paracity: urban acupuncture. Rionero in Vulture: Oil Forest League, 2015.
CASANOVA GARCÍA, Helena; HERNÁNDEZ MAYOR, Jesús. Public space acupuncture: strategies and interventions for activating city life. Barcelona: Actar, 2014.
DURÁN CALISTO, Ana María. Acupuntura ecológica: genealogía de un híbrido. Cuestiones Urbanas, Quito, v. 3, n. 1, p. 11-43, 2015. Disponível em: https://www.institutodelaciudad.com.ec/index.php/publicaciones/revistas/84-revista-questiones-urbano-regionales-volumen-iii-numero-3.html | Acesso em: 21 mai. 2021.
FRAMPTON, Kenneth. Seven points for the millennium: an untimely manifesto. The Architectural Review, Londres, v. CCVI, n. 1233, p. 76-80, nov. 1999.
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. Tradução: Jefferson Luiz Camargo e Marcelo Brandão Cipolla. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
FREDERICKS Joel et. al. The city as perpetual beta: fostering systemic urban acupuncture. In: DE LANGE, Michiel; DE WAAL, Martijn (ed.). The Hackable City. Cingapura: Springer, 2019.
LERNER, Jaime. Acupuntura urbana. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.
LERNER, Jaime. Urban acupuncture. Tradução: Mac Margolis, Peter Muello e Ariadne Daher. Washington: Island Press, 2014.
MOSTAFAVI, Mohsen et. al. (org.). Urbanismo ecológico en América Latina = Urbanismo ecológico na América Latina. Tradução: Camilla Bogéa e Moisés Puente, Joana Canedo e Paulo Silveira. Barcelona: Gustavo Gili; Cambridge: Harvard University Graduate School of Design, 2019.
SHIEH, Leonardo. Urban acupuncture as a strategy for São Paulo. 2006. 130 f. Thesis (Master of Science in Architecture Studies)-Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 2006. Disponível em: https://dspace.mit.edu/handle/1721.1/34983 | Acesso em: 21 mai. 2021.
SOLÀ-MORALES, Manuel de. De cosas urbanas. Barcelona: Gustavo Gili, 2008.