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glossário

AGÊNCIA

[...] A agência espacial geralmente parte da compreensão das implicações políticas de um determinado contexto e usa essa compreensão como um meio para, criativamente, transformar o espaço para melhor ou, mais particularmente, para transformar a vida das pessoas desse espaço para melhor por meio de uma atenção redobrada sobre como o espaço afeta as relações sociais e fenomenais. [...]

AWAN, Nishat; SCHNEIDER, Tatjana; TILL, Jeremy. Spatial agency: other ways of doing architecture. Londres; Nova Iorque: Routledge, 2011. [ p. 39, tradução nossa ]

Larissa Lopes Marreiros

Maria Luiza Cotta Bisinoto

Nathalia Py Cardoso

O termo agência consiste na capacidade de um agente intervir no mundo ao seu redor e modificá-lo. Agência é o ato de transformação, de fazer escolhas e impô-las ao seu meio. A agência pode ser descrita como a capacidade do indivíduo de agir independentemente das estruturas restritivas sociais (AWAN; SCHNEIDER; TILL, 2011). Em sentido amplo, podemos afirmar que agência é o que movimenta a sociedade. Através dela é possível trazer mudanças de cunho social, espacial, político e comportamental a ambientes e situações problemáticas na visão do agente em questão. Desse modo, ele busca por ferramentas e métodos para realizar o que surgiu de uma intenção que, muitas vezes, rompe com as estruturas rígidas da sociedade, estabelecendo o que considera ideal, o agente atua sozinho ou em conjunto com outros agentes cujos objetivos são comuns.

No âmbito da Arquitetura e do Urbanismo, a acepção do termo agência não é diferente, os arquitetos podem se tornar agentes de seu meio e procurar modificar situações que julgam inadequadas. A agência é a base para a crítica na prática arquitetônica, que é diretamente ligada à política e ao exercício do poder sobre as estruturas sociais, enfatizando o papel do arquiteto na construção da sociedade. Para que uma agência não se torne despótica e impositiva, faz-se necessário que se origine de anseios coletivos vinculados às demandas cotidianas de grupos sociais.

O arquiteto e urbanista pode estar na liderança desse agenciamento de forças,  deve ser o intérprete dos anseios coletivos, disponibilizando seu conhecimento na realização dos objetivos. Awan, Schneider e Till (2011) destacam que, para que o arquiteto seja o agente de intermediação dos anseios coletivos, é preciso exercitar o que Anthony Giddens (1987) chama de agir “de outra forma”. Os autores explicam que essa capacidade é, de certa forma, controversa para a mentalidade técnica, pois os profissionais tendem a partir exclusivamente de seu conhecimento técnico e metodológico para conduzir suas ações, tendo uma posição crítica acerca do tecnicismo e da inacessibilidade de algumas áreas profissionais ao público em geral. Afirmam que as profissões investem na ideia de um conhecimento estável como meio de conferir-lhes autoridade a si próprio e sobre os demais. Agir de outra forma, neste caso, é reconhecer os limites de sua autoridade e renunciar ao domínio exclusivo do conhecimento estável, isto é, se os agentes se permitirem "agir de outra forma", o seu conhecimento se torna negociável, flexível e, acima de tudo, compartilhado com os outros.

O arquiteto agente é aquele que efetua a mudança traduzindo as demandas de outros na solução de seus ambientes espaciais, abrindo novas potencialidades como resultado de um espaço social reconfigurado. A agência espacial é regida por uma complexa conexão entre as interações sociais e seus locais e limites, de modo que seu objeto pode ser uma entidade física, como um edifício, uma instalação, uma exposição, ou algo menos palpável, como um mapa ou um conjunto de instruções – ou, por que não ambos? Pensando nisso, o arquiteto é, além de agente modificador do espaço, agente modificador da sociedade. Isso pode ser entendido como o espaço social e a estrutura social, ou a estrutura física dos edifícios e o espaço físico. Para os autores do livro “Spatial Agency”, os edifícios não são determinados pela sociedade nem determinantes da sociedade, eles estão na sociedade, ou seja, são partes dela (AWAN; SCHNEIDER; TILL, 2011). 

Uma reflexão final leva a entender que a construção de um edificação nova não é, necessariamente, a melhor solução para um problema espacial e que existem outras formas de intervenção espacial que não necessariamente envolvem algo físico e palpável. A noção de agência pode ser expandida se relacionada à de empoderamento e à valorização de outras temporalidades de ação, caminhando em direção a uma prática atenta aos desejos de longo prazo e às necessidades de quem constrói, vive, trabalha, ocupa e experimenta a arquitetura e o espaço social. Ao identificar previamente a temporalidade e a contingência da produção espacial, o arquiteto-agente mostra-se atento às necessidades e desejos vindouros dos outros e muda-se o ato de projetar, entendido aqui como a construção de visões e soluções para um futuro indeterminado.​

O programa Favela Bairro, iniciado em meados dos anos de 1990 no Rio de Janeiro, é um bom exemplo dos enfrentamentos para a incorporação da dimensão participativa em programas públicos de moradia (BOAVENTURA; ROCHA, 2017). No plano geral, buscava-se promover a integração socioespacial das favelas ao tecido urbano, interrompendo o ciclo de exclusão dessas comunidades em relação à cidade. Considerando-se a postura dos agentes que financiaram e deram apoio institucional do Favela Bairro veio de órgãos internacionais como ONU Habitat, União Europeia, Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), deve-se reconhecer que em alguma medida a participação da população foi incentivada (DUARTE; SILVA; BRASILEIRO, 1996).

Notou-se, no entanto, a fragilidade ou superficialidade com que a opinião e capacidade de ação dos moradores foi tratada, tanto pelo poder público quanto pelas empresas contratadas para a execução dos projetos (GOMES, 2013). Este mesmo programa pode ser indicado, ainda, como um importante registro da diferentes posturas dos profissionais envolvidos nos projetos de urbanização de favelas. Prevaleceram experiências marcadas por uma produção arquitetônica autoral, associada a uma lógica racional que impõe uma estética própria, notadamente da cidade formal, sobre as áreas de intervenção, o que não as distingue muito do modo de projetar dos modernistas (BERENSTEIN, 2006).

Alguns casos merecem atenção, no entanto, por demonstrarem maior sensibilidade às implicações de uma intervenção formal em áreas que se formaram a partir de favelas, como na proposta para o Canal das Taxas, coordenada por Humberto Kzure-Cerqueira, com consultoria de Ana Clara Torres Ribeiro e Lilian Fessler Vaz. Esta e outras experiências de intervenção em favelas foram reunidas, mais adiante, na exposição “Favelas Upgrading”, no âmbito da 8ª Bienal de Arquitetura de Veneza, dando ampla visibilidade internacional a outras formas de intervir na cidade contemporânea a partir da experiência brasileira (FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO, 2002).

Algumas das colagens digitais produzidas para este verbete foram diretamente relacionadas a estas ações. Na imagem intitulada Cooper(ativismo) sobrepõem-se espaços de interação social coletiva, como praças e vias públicas, ocupados por agentes, pessoas que se apresentam como sendo capazes de gerar transformações sociais e espaciais (Figura 2). Destacam-se ainda várias escadas, que podem ser interpretadas como  a consciência de uma agência cooperativa, mas também como caminhos a serem percorridos para chegar à cidadania. A questão da mobilidade foi muito relevante para o Favela Bairro e programas subsequentes de intervenção urbana no Rio de Janeiro, dado o interesse em promover a integração das comunidades com o continuum urbano.

Figura 2
Cooper(ativismo) – colagem digital de Larissa Lopes.

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Além das escadarias, destaca-se na imagem o teleférico do Complexo do Alemão, um dos elementos das políticas públicas implementadas na comunidade para que os moradores pudessem atravessar o morro de forma rápida e segura. Essa relação entre escada e teleférico também demonstram um contraste, relacionado a velocidade em que as necessidades coletivas podem ser resolvidas se feitas de forma mútua. Por fim, vemos pessoas construindo um corrimão para a escada, o que demonstra que a ação coletiva constrói a democracia ou os apoios para que essa sociedade caminhe em direção a resolução de suas necessidades comuns, um tema que foi explorado, com maior centralidade, na colagem Escada como Arranha-céu (Figura 3).

Figura 3
Escada como Arranha-céu – colagem digital de Larissa Lopes.

Agencia-2.png

Outro exemplo bem sucedido de agência na arquitetura é o caso do arquiteto Diébédo Francis Kéré, nascido na vila de Gando, em Burkina Faso. Ele conta que, quando criança, não haviam escolas em sua vila, e dirigia-se a outra cidade para estudar em uma escola muito precária, o que não fazia bem aos estudantes de um modo geral. Depois da formação na Alemanha, o arquiteto conseguiu recursos para realizar o projeto que julgava necessário na sua comunidade: uma escola, que serviu de base para a colagem Impactos, que serve de ilustração para a abertura deste verbete. Kéré apresentou o projeto aos habitantes de sua vila e os convenceu a participar ativamente da construção. Todos se juntaram para criar a escola, algo que, além de unir a comunidade, também criou um bem comum almejado por todos. Hoje, a vila de Gando possui creche, biblioteca, centro de saúde e algumas escolas, todas feitas da mesma forma, pelos habitantes que desejavam mudar a sua realidade. ​Estas e outras questões estão presentes na colagem Trabalho Coletivo (Figura 4),

Figura 4
Trabalho Coletivo – colagem digital de Nathália Py.

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[ jun. 2022 ]

remissivos

referências

AWAN, Nishat; SCHNEIDER, Tatjana; TILL, Jeremy. Spatial agency: other ways of doing architecture. Londres; Nova Iorque: Routledge, 2011.

BOAVENTURA, Bethânia; ROCHA, Carla Pereira. Criação do Programa Favela-Bairro. In: CRONOLOGIA do Pensamento Urbanístico. Salvador: UFBA, 2017. Disponível em: https://cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1149 | Acesso em: 8 jun. 2022.

DOUCET; Isabelle; CUPERS, Kenny. Agency in architecture: rethinking criticality in theory and practice. Footprint, Delft, n. 4, p. 1-6, Spring 2009. Disponível em: https://doi.org/10.7480/footprint.3.1.694 | Acesso em: 22 jan. 2022.

FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. Favelas Upgrading: 8. Mostra Internationale D’Architettura. Biennale di Venezia. Pavilhão Brasileiro. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2002.
GOMES, Maria de Fátima Cabral Marques. Favela-Bairro e Morar Carioca: mudanças nas estratégias políticas, espaciais e institucionais para promover novos modos de regulação pelo mercado. In: JORNADA INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS, 7., 2013, São Luís. Anais eletrônicos... São Luís: Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da UFMA, 2013. Disponível em: <www.joinpp.ufma.br>. Acesso em: 15 jun. 2017.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução: Ana L. de Oliveira e Lícia C. Leão. São Paulo: Editora 34, 2000.

JACQUES, Paola Berenstein. Learning from Favelas. In: NUNES, Brasilmar Ferreira (Org.). Sociologia de capitais brasileiras: participação e planejamento urbano. Brasília: Liber Livros, 2006. p. 179-198.
OLIVEIRA, Rosana Medeiros de. Tecnologia e subjetivaçãoo: a questão da agência. Psicologia & Sociedade, Recife, v. 17, n. 1, p. 17-28, jan./ abr. 2005. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-71822005000100008 | Acesso em: 22 jan. 2022.

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