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glossário

ATIVISMOS e INSURGÊNCIAS

[...] O ativismo das mulheres é atualmente uma força importante para a mudança social na América Latina e uma inspiração para as feministas e os outros movimentos ao redor do mundo. Ao desafiar as forças destrutivas do capitalismo, do patriarcalismo e da destruição ecológica, as mulheres estão construindo novas formas de existência que rejeitam a lógica de mercado e as políticas mais recentes sobre a reprodução da vida cotidiana , canalizando o poder das relações afetivas que tradicionalmente caracterizaram a esfera doméstica na produção da solidariedade social. [...]

FEDERICI, Silvia. Na luta para mudar o mundo. Tradução: Luciana Benetti Marques Valio. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 2, p. 1-12. [ p. 3 ]

Amanda Lima Pereira

Cinthia Cavalcante Alves

Jordana Casali Arenhart

O dicionário Houaiss apresenta quatro acepções para o vocábulo "ativismo", associadas aos campos da Filosofia, Literatura e da Política, sendo a primeira: "FIL qualquer doutrina ou argumentação que privilegie a prática efetiva de transformação da realidade em detrimento da atividade exclusivamente especulativa, freq. subordinando sua concepção de verdade e de valor ao sucesso ou pelo menos à possibilidade de êxito na ação" (HOUAISS; VILLAR, 2008, p. 335). Embora seja uma palavra amplamente presente nas mídias, seu significado etimológico ainda merece um esforço de conceituação, pois ele tem sido mais abordado a partir da ótica dos movimentos sociais. O termo "insurgência", ainda de acordo com o Houaiss, é definido como "1 caráter ou condição do que é insurgente 2 ato ou efeito de insurgir(-se); insurreição, rebelião" (HOUAISS; VILLAR, 2008, p. 1629), designando assim um movimento de possibilidades na ativação de pensamentos, ações e emoções, ocasionando transformações sociais e derivando questionamentos que indagam sobre os mecanismos impostos pelo sistema ao mundo social como um todo.

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Figura 2
Linha do tempo das conquistas de mulheres brasileiras, por Amanda Lima Pereira

Do amplo universo de experiências relacionadas aos movimentos sociais, daremos atenção aos ativismos e conquistas sociais e legais que foram liderados por mulheres. Diante de um mundo onde imperam o machismo e o patriarcado, as mulheres sempre tiveram que lutar para afirmar seus direitos. Entre essas lutas, destacamos movimentos iniciais como o ato de reivindicar o acesso à educação no Brasil, resultando que em 1827 as meninas puderam ir às escolas elementares e, apenas em 1879, elas conseguiram o direito de frequentar instituições de ensino superior, ainda que a sociedade da época desaprovasse essa conquista. Em 1832, Nísia Floresta, uma personagem pioneira no feminismo brasileiro, traduziu a obra “Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens'‘, da escritora e filósofa inglesa Mary Wollstonecraft. O primeiro partido político feminino surge em 1910, o Partido Republicano Feminino, que reivindicava o direito ao voto e à emancipação das mulheres. Leolinda Daltro, professora e fundadora do partido, liderou passeatas exigindo que o voto fosse estendido para as mulheres. No ano de 1922, foi fundada a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) por Bertha Luz. Contudo, apenas após essa data, as mulheres conquistaram o direito ao voto, uma vitória marcada pelos movimentos feministas, sendo o sufrágio feminino garantido pelo primeiro Código Eleitoral Brasileiro em 1932. A primeira deputada no Brasil a ser eleita foi Carlota Pereira Queiróz, em 1934, entretanto, somente em 2010, Dilma Rousseff foi eleita a primeira presidente do Brasil. Dentre as leis que possibilitaram uma mudança no panorama feminino no Brasil, entrou em vigor o Estatuto da Mulher Casada em 1962, que permitiu às mulheres o poder de trabalhar fora de casa sem autorização do marido, além do direito de requerer a guarda dos filhos em caso de separação. Outro êxito fundamental foi a criação da primeira delegacia de Atendimento Especializado à Mulher no ano de 1985 em São Paulo. Em 2006, foi promulgada a Lei Maria da Penha, em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes que, durante 20 anos, lutou para que seu agressor fosse condenado. Contudo, essa lei não impediu que as mulheres continuassem a ser vítimas de seus companheiros e de outros agressores. A Lei do Feminicídio foi outro avanço, pois classificou o assassinato de mulheres entre crimes hediondos. Recentemente a importunação sexual das mulheres passou a ser considerada crime no Brasil, o caso de 2017 em que Diego Novaes assediou duas mulheres no transporte público tomou proporções nacionais sendo o estopim para a promulgação em 2018 da Lei de Importunação Sexual.

O ativismo feminino no Brasil

As mulheres brasileiras, em especial as trabalhadoras rurais e as indígenas, têm sido as grandes protagonistas dos ativismos e insurgências atuais. Elas estão na linha de frente na luta por diversos direitos, pois são as primeiras afetadas pelas crises econômicas e ambientais. Na maioria das vezes, são elas as responsáveis por toda a carga de trabalho doméstico, sustentação econômica e cuidado com os filhos. Essas mulheres estão longe de seguirem o estereótipo arcaico ainda mostrado por instituições internacionais, são engajadas politicamente e participam ativamente das tomadas de decisões, muitas vezes, enfrentando os conflitos com o governo, a polícia e o sistema capitalista que contribui imensamente para a opressão delas. Assim como define a professora Silvia Federici:

[...] O ativismo das mulheres é atualmente uma força importante para a mudança social na América Latina e uma inspiração para as feministas e os outros movimentos ao redor do mundo. Ao desafiar as forças destrutivas do capitalismo, do patriarcalismo e da destruição ecológica, as mulheres estão construindo novas formas de existência que rejeitam a lógica de mercado e as políticas mais recentes sobre a reprodução da vida cotidiana, canalizando o poder das relações afetivas que tradicionalmente caracterizaram a esfera doméstica na produção da solidariedade social. [...] (FEDERICI, 2020, p. 3) 

Um dos grandes exemplos do ativismo feminino no Brasil foi protagonizado pela indígena Txai Suruí, graduanda em Direito e ativista do povo Paiter Suruí, que discursou nas últimas duas Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas. Suruí trabalha na ONG Kanindé, fundada por sua mãe, com uma atuação em que reivindica o direito dos povos indígenas participarem das medidas de combate ao aquecimento global. Suruí defende que são esses povos, mesmo enfrentando a diminuição de sua população dia após dia pelas consequências da exploração ambiental e invasões de suas terras, os principais responsáveis por proteger a maior parte das florestas no mundo. Ela ainda destaca, em sua entrevista para a revista Piauí (12/2021), referindo-se ao processo decisório nas conferências: “Temos que descolonizar todos os espaços, e isso se faz incluindo pessoas indígenas, negras, quilombolas, da favela” (SURUÍ, 2021, s.p.).

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Figura 3
O Florescer do Ativismo Feminino – colagem digital de Amanda Lima Pereira, Cinthia Cavalcante Alves e Jordana Casali Arenhart

Outro movimento a ser lembrado como ativismo feminino é a Marcha das Margaridas, realizada em 2019, umas das maiores mobilizações de mulheres da América Latina reunindo até cem mil mulheres em Brasília. O movimento surgiu em decorrência do assassinato da líder sindical Margarida Maria Alves, que lutava pelos direitos dos trabalhadores sindicais na Paraíba. Iniciado nos anos 2000 para reivindicar os direitos das mulheres e a cidadania, esse movimento uniu o público feminino de diferentes lugares do Brasil. Ao longo dos anos, a marcha das Margaridas partiu da organização de mulheres do campo e se expandiu, como atualmente expressa seu nome, abrangendo agora as “mulheres do campo, das florestas, das águas e das cidades”.

As insurgências do ativismo feminino nas cidades

Ao analisar os ativismos femininos aplicados às cidades, nota-se que eles se concentram, principalmente, nos movimentos e questões que moldaram o urbano nos contextos históricos dos séculos XX e XXI, protagonizados por pensadoras com foco na luta pelo direito à cidadania. Sob uma perspectiva influenciada pela teoria da complexidade e pelo anarquismo, Jane Jacobs, escritora e ativista nascida em uma pequena cidade da Pensilvânia, usou sua voz em um período em que o planejamento urbano de matriz modernista dominava o campo das ideias e se expressava, agressivamente, na cidade de Nova Iorque através da atuação de Robert Moses. As intervenções urbanas, segundo um Modernismo ortodoxo, deu origem a subúrbios desconectados  e, posteriormente, a uma série de demolições e modificações em áreas centrais de grandes cidades dos Estados Unidos.

Foi nesse cenário de transformações que Jane Jacobs publicou o livro “Morte e Vida de Grandes Cidades”, em 1961, com uma aguda crítica aos parâmetros de planejamento urbano que visavam priorizar os carros, ignorando a acessibilidade e a vida dos pedestres. As cidades, para Jacobs, deveriam ser espaços para acolher as diversidades e pluralidades de uso nas ruas, de escalas, onde pessoas de diferentes classes socais conviveriam. Os esforços de Jacobs foram além de seus escritos, pois sua luta na esfera pública e em manifestações impulsionaram um ativismo que reuniu as pessoas a vencerem o “master builder" de Nova Iorque, evitando assim que bairros inteiros sofressem demolições, como West Village e Soho. No trecho a seguir constam alguns versos da canção composta por Bob Dylan, utilizada durante os protestos, com o nome “Listen, Robert Moses”: ”Escute, Robert Moses, escute se puder,/ É o nosso bairro que você está tentando condenar,/ Nós não vamos ficar sentados e assistir nossas casas serem derrubadas/ Então pegue a sua autoestrada e coloque-a para fora da cidade [...]” (DYLAN; JACOBS, [1961], tradução nossa).No contexto do desenvolvimento do planejamento urbano nas cidades e seus movimentos insurgentes durante os anos 1960, Jane Jacobs se tornou uma das primeiras vozes na resistência urbana a se posicionar na luta contra o urbanismo autoritário e desumanizado. Ela se posicionou frente às questões de patrimônio, diversidade e pluralidades, a favor da participação dos habitantes em busca do direito da cidadania.

Não pode ser rotulado como um problema das áreas mais antigas das cidades. O problema atinge dimensões alarmantes em certas áreas da cidade que foram reurbanizadas, incluindo supostamente os melhores exemplos de reurbanização, como os conjuntos habitacionais de renda média. O chefe do distrito policial de um empreendimento  desse tipo, elogiado em todo o país (pelos urbanistas e pelos financiadores) não só censurou recentemente alguns moradores por ficarem fora de casa depois do anoitecer, como também recomendou que nunca abrissem a porta para desconhecidos. A vida nesse caso tem muito em comum com a dos três porquinhos e a dos sete anões das histórias infantis [...] (JACOBS, 2011, p. 31)

Todavia, mesmo com as conquistas dos movimentos sociais importantes do século XX, a contemporaneidade ainda mobiliza protestos e ações para a garantia de direitos, proteção e preservação das cidades. Na lógica do consumo de  massa, da reprodução da força de trabalho e da ocupação das áreas mais próximas aos centros urbanos serem controlados por empreiteiras e imobiliárias, evidenciou-se o crescimento da marginalização das populações de renda mais baixa e no Brasil este  índice de desigualdade é visível nos grandes e pequenos núcleos urbanos.

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Figura 4
Jacobs e Maricato: As Insurgências Femininas dentro da Perspectiva Urbana – colagem digital de Cinthia Cavalcante Alves.

Desta forma,  os reflexos do passado motivaram ainda mais mulheres a reunirem suas vozes pela reforma urbana. Uma delas vem de Ermínia Maricato, arquiteta e urbanista, professora, pesquisadora e ativista brasileira, nascida em São Paulo, ela defendeu a Reforma Urbana na Assembleia Constituinte em 1988. Além disso, tornou-se secretária executiva do Ministério das Cidades e conselheira das Nações Unidas em 2009, pela UN-Habitat, foi a primeira mulher a receber a Medalha de Ouro da Federação Pan-Americana de Associações de Arquitetos (FPAA). Maricato contribui para equacionar a falta de moradia e de diversidade social e de classe nas proximidades dos centros urbanos e também no desenvolvimento de políticas habitacionais. Algumas de suas principais pautas, quais sejam a inclusão dos mutirões como parte das políticas de habitação e o entendimento da complexidade das periferias brasileiras, já estavam presentes no livro “A produção da casa (e da cidade) no Brasil industrial”, por ela organizado, antes mesmo da experiência pioneira durante sua gestão como secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano da cidade de São Paulo durante a gestão da prefeita Luiza Erundina:

Em qualquer lugar em que a habitação é mercadoria e propriedade privada a questão da habitação se identifica com a questão da casa própria. Seja pela forma como a inciativa provada encaminha a questão através da publicidade incentivando a aquisição da casa, seja pela forma como o Estado encaminha, oferecendo financiamento para a compra ou construção da casa própria, a questão da habitação fica bastante dirigida, deslocando para o campo da ficção discussões e estudos sobre acerca de invocações arquitetônicas coletivistas que se referem a um novo modo de habitar. (MARICATO, 1979, p. 84)

As idéias de marginalidade, espontaneidade, descontrole e desorganização que acompanharam durante algum tempo a abordagem das periferias das metrópoles dos países dependentes não se sustentam diante de uma análise que não se prenda à visão empírica simplesmente, ou ao resultado formal do ambiente físico, mas que se refira aos fatores que intervêm e que determinam a produção desse serviço. (MARICATO, 1979, p. 93)

Desta maneira, é fundamental destacar a inclusão da mulher em movimentos sindicais, políticos, em posição de diretoria, tesouraria e como presidentas em engajamentos na participação ativa a movimentos sociais, de maneira  que os atos e efeitos de insurgir continuem avançando para que as mulheres utilizem suas vozes a fim de ampliarem ainda mais seu papel na sociedade. Assim ficou registrado o depoimento de Aires Oliveira, então secretária de Mulheres Trabalhadoras Rurais e coordenadora da Comissão Ampliada da Marcha das Margaridas

[ jun. 2022 ]

[...] A gente luta também por acesso à água porque a gente sabe que o gerenciamento da água do quintal da casa é das mulheres na produção de alimentos saudáveis. A gente luta pela saúde que reconheça a integralidade do corpo da mulher, não vejo a mulher somente como peito e útero, processo da reprodução machista, a forma do governo dominar os nossos corpos. [...] [Aires Oliveira] (TAVARES; GÓIS, 2020, p. 1472)

remissivos

referências

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BERNARDO, Esteves. A nova cara do ativismo: Txai Suruí quer os povos indígenas no centro das decisões sobre a crise climática. Revista Piauí, São Paulo, v. 183, dez. 2021. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/nova-cara-do-ativismo/07 | Acesso em: 9 fevereiro. 2021.

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FEDERICI, Silvia. Na luta para mudar o mundo: mulheres, reprodução e resistência na América Latina. Tradução: Luciana Benetti Marques Valio. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 2, p. 1-10, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n270010 | Acesso em: 7 de fev. 2022.

GALBRAITH, Aaron; ATWOOD, Tony. The Bob Dylan Showcase: Listen Robert Moses: Chris Sheriden. [S.l.]: Untold Dylan, May 30, 2020. Disponível em: https://bob-dylan.org.uk/archives/14984 | Acesso em: 19 abr. 2022.

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