glossário
BRASÍLIA CONTEMPORÂNEA
Constelação do Distrito Federal . Mapa com as Regiões Administrativas do DF, redimensionadas em função de sua ocupação populacional. Produzido pelas autoras, a partir de dados do GeoPortal.
A cidade contemporânea reúne em seus estratos formais, históricos e sociais contradições e ambiguidades resultantes das práticas, resquícios e transformações das formas de cidade precedentes, a cidade industrial e a cidade moderna, cujos delineamentos são tão imprecisos quanto sua própria natureza. No plano das percepções trata-se de um território de natureza instável, um conjunto de fragmentos e racionalidades múltiplas, onde operam a desordem e a incerteza [...].
SILVA, Sued Ferreira da. Paisagens atravessadas: projeto, experiência e cotidiano na Estrada Parque Taguatinga em Brasília. 2018. 296 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de Brasília, Brasília, 2018. [p. 177]
Ianna Nunes
Pillar Accioly
Roberta Borges
Embora o fenômeno de dispersão urbana esteja muito presente no desenvolvimento da cidade de Brasília, é importante situar a discussão em um tempo mais longo do que a construção da Capital, o que remonta a ideias e experiências de outros contextos territoriais. Pescatori (2015, p. 44) associa o início desse fenômeno à industrialização e às grandes transformações que ocorreram nas cidades ao longo do século XIX. A Revolução Industrial foi acompanhada por avanços tecnológicos e mudanças sociais que alteraram, significativamente, a dinâmica das cidades, tornando-as mais densas, populosas e complexas. Essas alterações e suas inevitáveis consequências, como a falta de infraestrutura, epidemias e a degradação das condições de vida tiveram grande impacto no campo do urbanismo, influenciando propostas e modelos de cidades que buscavam alternativas ao aumento de densidade nos centros urbanos. Casos como a Cidade-Jardim de Ebenezer Howard, Broadacre City de Frank Lloyd Wright, bem como os planos Une Ville Contemporaine pour 3 Millions d’Habitants, Plan Voisin e Ville Radieuse de Le Corbusier são alguns exemplos de propostas que buscavam transformar a lógica espacial das cidades (PESCATORI, 2015), explorando ideais de saúde, grandes espaços verdes, qualidade de vida e modernidade, refletidos, em sua maioria, em modelos urbanos fundamentados na dispersão espacial.
Associados a esses movimentos, outros fatores que impulsionam a dispersão das cidades foi o aumento do uso generalizado do automóvel, afetando a lógica das distâncias e deslocamentos (CATALÃO, 2008), a busca do mercado imobiliário por novas áreas de ocupação e o aumento da violência urbana (PESCATORI, 2015). Todos esses processos determinaram uma drástica transformação nas cidades e influenciaram os projetos e planejamentos urbanísticos que se desenvolveram nas décadas seguintes.
Nestor Goulart Reis Filho e Júlio Cláudio da Gama Bentes (2016, p. 2) caracterizam o processo de dispersão urbana como sendo caracterizada pelo “[...] esga[r]çamento do tecido urbano, com a urbanização estendendo-se por um vasto território, com núcleos urbanos separados no espaço por vazios intersticiais, mantendo vínculos estreitos entre si e configurando um único sistema urbano.” Esses núcleos, ainda segundo os autores, integram-se às aglomerações metropolitanas e submetropolitanas e se mantêm conectados através de sistemas de vias de transporte.
Ao longo das últimas décadas o fenômeno atingiu diferentes cidades no mundo, apresentando “especificidades locais resultantes das dinâmicas de cada formação socioespacial, do nível de desenvolvimento experienciado em cada país e da influência recebida de realidades externas” (CATALÃO, 2008, p. 4), seja nos subúrbios americanos ou nos condomínios residenciais de alto padrão brasileiros. Em Brasília, no entanto, esse processo foi diferente. Carolina Pescatori (2015, p. 49) afirma que “[d]iferentemente de outras cidades brasileiras, Brasília nasce dispersa – e sua periferia permanece fragmentada e distante do centro durante décadas".
O projeto de Lucio Costa para a nova capital repercutiu e trouxe contribuições a partir de teorias urbanísticas do movimento moderno, apostando que a nova capital ensejaria o planejamento do território do Distrito Federal. O modelo de desenvolvimento apoiava-se, em alguma medida, no conceito de Cidade-Jardim, que previa a expansão urbana por meio de cidades-satélites. Todavia, segundo Ana Elisabete Medeiros e Nécio Campos (2010), o constante fluxo migratório para a nova capital levou o governo a construir cidades em torno do Plano Piloto visando a erradicar assentamentos provisórios, resultando na ocupação da região por meio de manchas descontínuas que, ao longo de sessenta anos, sofreu grandes alterações (Figs. 1 e 2).
[ Fig. 1 ]
Mapa da evolução da ocupação urbana em Brasília, de 1950 a 2013. Produzido por Sued Ferreira da Silva e Sergio Eduardo Porto, com base em dados disponibilizados pela SEGETH. Fonte: Silva (2018, p. 172).
[ Fig. 2 ]
Mapa de densidade populacional do Distrito Federal. Produzido por Sued Ferreira da Silva e Sergio Eduardo Porto, com base em dados disponibilizados pela SEGETH. Fonte: Silva (2018, p. 173).
A infraestrutura de conexão de Brasília foi estabelecida desde a escolha do projeto vencedor. Lucio Costa já previa a expansão da região para as ditas cidades-satélites e a relação de dependência destas em relação à Capital. Sir William Holford (2012 [1957], p. 32 apud SILVA, 2018, p. 136), um dos membros do júri do concurso de Brasília, avaliou que “[...] a eficiência econômica exigirá uma região motorizada, com boas estradas, cuidadosamente preparadas, ao invés de uma rede aberta de pequenos caminhos. [...]”. Durante o estabelecimento de Brasília, ocorreu a divisão entre os órgãos para construção das estradas que comporiam essa rede. Responsabilidade da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), a estrada Brasília-Anápolis, extensão da Belém-Brasília, foi uma das primeiras a serem construídas, atraindo assim os trabalhadores da construção, provocando um fenômeno de inversão. Apesar de serem consideradas no projeto inicial, as cidades-satélites acabaram se estabelecendo antes de Brasília, concentradas ao lado sudoeste da capital, margeando a estrada.
Entende-se, assim, a formação de Brasília como uma cidade polinucleada e dispersa antes mesmo de sua inauguração em 1960. Os operários foram alojados em acampamentos das construtoras responsáveis pela construção da nova Capital, em acampamentos da Novacap ou em ocupações informais.
Alguns dos acampamentos, como a Cidade Livre (1956) – atual Núcleo Bandeirante –, tornaram-se permanentes. Taguatinga, de 1958, foi a primeira cidade-satélite, à qual muitas outras foram se sucedendo ao longo do tempo. Segundo Aldo Paviani (2010, p. 228) “O polinucleamento se deu com centralização de funções econômicas, das oportunidades de trabalho e desconcentração da atividade residencial, o que redundou em desemprego estrutural nos núcleos periféricos”. O autor assim prossegue:
O polinucleamento não ensejou que, nesses assentamentos, houvesse espaços de oferta de oportunidades de trabalho e de serviços urbanos nas dimensões necessárias. Com a centralização de empregos e oferta de serviços, consolidou-se uma ocupação excludente do espaço [...]. Na evolução da metrópole, deve-se considerar também a disseminação ilegal ou irregular de “condomínios rurais” e “loteamentos clandestinos”, na tentativa de adicionar núcleos residenciais não contemplados nas políticas habitacionais do Governo do Distrito Federal (GDF), por vezes ao arrepio da lei. [...] (PAVIANI, 2010, p. 230-231)
[ jan. 2022 ]
remissivos
A política pública de retirar do centro a massa da população operária resultou na dispersão dos núcleos das cidades, mantendo-se o Plano Piloto (PP) resistente às pressões habitacionais. A área da Capital correspondente ao Plano foi inscrita como patrimônio mundial pela UNESCO em 1987. O processo de tombamento da cidade considerou a necessidade de: “[...] [r]espeitar as quatro escalas que presidiram a própria concepção da cidade: a simbólica e coletiva, ou Monumental; a doméstica, ou Residencial; a de convívio, ou Gregária; e a de lazer, ou Bucólica, através da manutenção dos gabaritos e taxas de ocupação que as definem.” (COSTA, 1995, p. 331, grifos do autor). O tombamento do Plano Piloto corroborou para isolá-lo do restante das regiões administrativas que, ao longo do tempo, vem passando por processos de conurbações, ensejando a pergunta: seria ainda hoje possível falar do Plano Piloto como centro de Brasília e suas cidades-satélites como periferia?
referências
CATALÃO, Igor. Brasília, cidade dispersa?. In: ENCONTRO DE GEOGRÁFOS DA AMÉRICA LATINA, 12., 2009, Montevidéu. Anais [...]. FCT/UNESP, 2009. Disponível em: http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal12/Geografiasocioeconomica/Geografiaurbana/39.pdf | Acesso em: 15 set. 2021.
COSTA, Lucio. Brasília revisitada. [1987]. In: COSTA, Lucio. Registro de uma vivência. 3. ed. São Paulo: edições SESC; Editora 34. p. 330-331.
MEDEIROS, Ana Elisabete de Almeida; CAMPOS, Neio. Cidade projetada, construída, tombada e vivenciada: pensando o planejamento urbano em Brasília. In: PAVIANI, Aldo et. al. (org.). Brasília 50 anos: da capital a metrópole. Brasília: Editora UnB, 2010. p. 137-162.
PAVIANI, Aldo. A metrópole terciária: evolução urbana socioespacial. In: PAVIANI, Aldo et. al. (org.). Brasília 50 anos: da capital a metrópole. Brasília: Editora UnB, 2010. p. 227-251.
PAVIANI, Aldo; BARRETO, Frederico Flósculo Pinheiro; FERREIRA, Ignez Costa Barbosa; CIDADE, Lúcia Cony Faria; JATOBÁ, Sérgio Ulisses (org.). Brasília 50 anos: da capital a metrópole. Brasília: Editora UnB, 2010. (Coleção Brasília).
PEIXOTO, Elane Ribeiro; LIMA, Carlos Henrique Magalhães; PESCATORI, Carolina. Urbanização violenta: dinâmicas da segregação socioespacial em Brasília. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL, 18., 2019, Natal. Anais [...]. Natal: ANPUR; UFRN, 2019. Disponível em: http://anpur.org.br/xviiienanpur/anaisadmin/capapdf.phprreqid=9711 | Acesso em: 15 out. 2019.
PESCATORI, Carolina. Cidade compacta e cidade dispersa: ponderações sobre o projeto do Alphaville Brasília. RBEUR: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, [S.l.], v. 17, n. 2, p. 40-62, ago. 2015. Disponível em: https://rbeur.anpur.org.br/rbeur/article/view/4995 | Acesso em: set. 2021.
REIS FILHO, Nestor Goulart; BENTES, Júlio Cláudio da Gama. Urbanização dispersa e novas formas de tecido urbano: estudos, diálogos e desafios. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO, 4., Porto Alegre, p.1-4, 25 a 29 de julho de 2016, Porto Alegre. Anais [...]. Disponível em: https://enanparq2016.files.wordpress.com/2016/09/s45-00-goulart-reis-n-gama-bentes-j.pdf | Acesso em: 15 set. 2021.
SILVA, Sued Ferreira da. Paisagens atravessadas: projeto, experiência e cotidiano na Estrada Parque Taguatinga em Brasília. 2018. 296 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de Brasília, Brasília, 2018. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/32664 Acesso em: 15 jan. 2022.