glossário
O COMUM
Colagem digital de Bruna Leite, Jessica Duarte e Leonardo Nóbrega
Colagem digital de Jessica Duarte
Colagem digital de Jessica Duarte, Bruna Leite e Leonardo Nóbrega
Colagem digital de Bruna Leite, Jessica Duarte e Leonardo Nóbrega
[...] De um modo geral, o Comum refere-se aos bens, espaços e recursos (materiais e/ou imateriais) que são produzidos e apropriados coletivamente por uma dada comunidade por meio de práticas e relações de compartilhamento e reciprocidade, fora do âmbito do Estado e do mercado e dos seus respectivos regimes de propriedade: público e privado.
TONUCCI FILHO, João Bosco Moura. Comum urbano: a cidade além do público e do privado. 2017. 244 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geoociências, UFMG, Belo Horizonte, 2017. [ p. 23 ]
Bruna Leite Lopes
Jessica Sousa Duarte
Leonardo Nóbrega Queiroz de Paiva
[ 1 ]
Comuneiro é uma tradução para commoner usada por Tonucci Filho (2017, p. 37) para se referir aos “homens e mulheres responsáveis pelo cultivo e pela produção de um determinado recurso comum, a ele tendo direitos costumeiros de uso e acesso”.
O Comum pode ser compreendido como uma série de práticas, vivências e processos de compartilhamento desvinculados das noções de Estado e de propriedade. Para os sociólogos franceses Pierre Dardot e Christian Laval (2017), é uma noção que ultrapassa o significado meramente etimológico, sendo caracterizada em seu livro “Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI” como uma possível alternativa política. Nesse texto, os autores discorrem sobre maneiras efetivas de se enfrentar o neoliberalismo que, de acordo com Dardot e Laval, é mais do que um pilar de estruturação política, constituindo-se como uma lógica social com repercussões comportamentais tanto na “classe dominante”, quanto na “classe dominada”, reduzindo todas as suas ações na sociedade a meros produtos.
Dardot e Laval afirmam que enquanto essa mercantilização de seres humanos, do tempo e do trabalho estiver vigente, o capitalismo irá se perpetuar. O “Princípio Político do Comum” surge, na obra desses autores, como uma posição política para combater a lógica do capital, que poderia levar a democracia para outro patamar ao inferir a independência e a libertação das pessoas visando o verdadeiramente comum.
Em outra aproximação ao termo, dada pelo pesquisador João Tonucci Filho (2017, p. 23), o Comum é definido como "[...] [os] bens, espaços e recursos (materiais e/ou imateriais) que são produzidos e apropriados coletivamente por uma dada comunidade por meio de práticas e relações de compartilhamento e reciprocidade, fora do âmbito do Estado e do mercado e dos seus respectivos regimes de propriedade: público e privado. [...]". Dessa maneira, podemos compreender uma ampla série de práticas, políticas, objetos e vivências sociais de compartilhamento como vinculadas à ideia do comum, isto é, práticas que assumem as ideias de coletividade e autogestão num sentido de tomada de decisão e de apropriação da realidade física e social circundante por uma comunidade. São atitudes, escolhas e posicionamentos não-individuais, ou seja, que se distanciam daquilo que é exclusivamente próprio. Tal atitude permite uma compreensão de elementos e práticas compartilhados como dignos de atenção e responsabilidade, afastando os comuneiros¹ das amarras que a propriedade privada e o estado lhes impõem (num sentido de individualidade e posse). O anticapitalismo, então, incentiva a reivindicação de comuns, sejam estes bens materiais ou imateriais, por parte dos comuneiros e principalmente por parte das lutas sociais. É desse modo que o “Princípio Político do Comum”, de Dardot e Laval, entra em ação, como instrumento anticapitalista na revolução contra o neoliberalismo.
Quando tomamos o século XX como ponto de partida, a ideia do comunismo pode ser inserida no debate do comum como uma política contrária ao liberalismo e às formas de exploração. Dessa maneira, podemos retomar o pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels na concepção do comunismo, um sistema político e econômico que toma como ponto de partida a “a supressão da propriedade privada” (MARX; ENGELS, 1998, p. 52) e surge a partir da compreensão da terra e dos meios de produção como bens comunitários a serem geridos em sociedade. Dessa maneira, entende-se a presença da classe burguesa (proprietária das terras e dos meios de produção) como um empecilho à liberdade e ao bem-estar do operariado. É nesse sentido que Engels comentava que o comunismo é “um sistema segundo o qual a terra deve ser um bem comum aos homens. Cada um deve trabalhar e produzir de acordo com suas capacidades, e gozar e consumir de acordo com as suas forças” (ENGELS apud TONUCCI FILHO, 2017, p. 47).
Mas, para além das concepções sociais e ideológicas do comunismo, podemos encontrar na própria luta do proletariado um sentido comum. Luta proposta por Marx e Engels como um ponto de partida para a revolução do proletariado e que trouxe um grande impacto ao cenário socioeconômico do século XX. No Manifesto Comunista, os autores comentam que “A organização do proletariado em classe e, portanto, em partido político, é incessantemente destruída pela concorrência que fazem entre si os próprios operários. Mas renasce sempre, e cada vez mais forte, mais sólida, mais poderosa.” (MARX; ENGELS, 1998, p. 48). A partir desse trecho, percebemos o sentido de comunidade e de autogestão existente na própria luta do proletariado, com os próprios conflitos entre os agentes do processo indicando tomadas de decisão participativas.
Entendemos que o debate do Comum surgiu em diferentes momentos históricos, sendo também passível de críticas e vinculado a polêmicas e debates ideológicos. Hardin (2011) utiliza o termo "Tragédia do Comum” para defender que os bens comuns são a causa da degradação ambiental. Com base no argumento de que os recursos sem donos são desprotegidos e levam a um comportamento centrado no interesse individual por medo de escassez, quase como uma competição, que se concluiria em uma superexploração dos recursos naturais. A teoria de Hardin defende a necessidade de uma forma de controle externo, seja público ou privado, sobre os bens comuns, de maneira a evitar sua extinção. Diante disso, Hardin foi um grande colaborador para a política de privatização do comum. Sob o pretexto de proteger a biodiversidade e conservar os bens comuns globais, o conceito do Comum, associado à narrativa da “Tragédia do Comum”, foi adaptado aos interesses do mercado e colocado a serviço da privatização, tornando-se uma tendência funcional ao mercado que favorece medidas de cercamento e privatização da natureza.
Também em um sentido de defesa do sistema democrático baseado no livre funcionamento do mercado, Ostrom (1990) defende que com a gestão coletiva, com regras de uso e acesso definidas pelas comunidades, tem-se mecanismos econômicos-sustentáveis de preservação dos recursos, que solucionariam a problematização da denominada “Tragédia dos Comuns”. O autor busca demonstrar, assim, a possibilidade de os indivíduos cooperarem e decidirem coletivamente apesar dos interesses imediatos e individualistas, e em detrimento do controle externo exercido pelo Estado ou pelo mercado.
Também em um sentido de defesa do sistema democrático baseado no livre funcionamento do mercado, Ostrom (1990) defende que com a gestão coletiva, com regras de uso e acesso definidas pelas comunidades, tem-se mecanismos econômicos-sustentáveis de preservação dos recursos, que solucionariam a problematização da denominada “Tragédia dos Comuns”. O autor busca demonstrar, assim, a possibilidade de os indivíduos cooperarem e decidirem coletivamente apesar dos interesses imediatos e individualistas, e em detrimento do controle externo exercido pelo Estado ou pelo Mercado.
Dessa maneira, temos que a presença de bens comunitários e de suas formas de gestão é um pilar importante na história do pensamento. As reflexões acerca desse tema podem trazer diversos questionamentos e conclusões acerca dos rumos tomados pela humanidade e pelas relações estabelecidas em sociedade.
A título de exemplo, tem-se o ativismo das mulheres, com a forção de comunidade e autogestão. O movimento das mulheres pelos seus direitos tem sido uma força importante para a mudança social e para a formulação da política do Comum. Por sofrerem diretamente as consequências do poder de destruição do capitalismo, do patriarcalismo e da degradação do meio ambiente, o novo protagonismo político feminista surge por meio de ações coletivas que promovem uma nova definição de democratização e organização social. Através da ideia de uma sociedade não capitalista que rejeita a lógica de mercado e as políticas sobre a reprodução da vida cotidiana, os movimentos das mulheres recodificam o feminismo, modificando o trabalho cotidiano, social e reprodutivo em ação coletiva que transforma os bairros em comunidades de resistência à exploração capitalista.
As mulheres engajaram-se em diversas lutas para defender o comum em seus cotidianos e sociedades. Podemos citar como exemplo as ações das Piqueteras e das Villas de Buenos Aires, as quais são, segundo Federici (2020), empreendimentos formados para combater o empobrecimento, sustentados pela ajuda natural, autogestão e cooperação feminista. Essa colaboração feminina resultou na criação de novos espaços, sem proprietários, disponíveis para decisões sobre a vida cotidiana. Outro exemplo, é a propagação da agricultura urbana na África e as hortas urbanas nos Estados Unidos, nas quais as mulheres assumiram um papel de liderança. No deslocamento do espaço rural para o urbano, as mulheres tomaram para si a tarefa de cultivação de hortas em lotes vazios públicos, tendo como objetivo a autoprodução alimentar, a regeneração do meio ambiente e a transmissão de práticas culturais. Dessa maneira, a prática rompeu com a barreira entre urbano e rural e transformou as paisagens das cidades.
Em relação a espaços comuns não materiais, é possível incluir em um debate dicotômico a internet e principalmente as mídias sociais. Existem duas possibilidades para encarar esses recursos. A primeira os considera um espaço de possibilidades para a discussão de novas ideias e oferece certa noção de democracia. De acordo com David Bollier em seu livro “Think like a commoner”, “A explosão das tecnologias de comunicação e informação, como a Internet, faz proliferar modos de produção e difusão de conhecimento livre e comum que escapam às amarras do controle público ou privado” (BOLLIER apud TONUCCI FILHO, p. 37).
Tendo em mente que o comum está nos recursos geridos por uma comunidade de modo coletivo, é possível afirmar que de certa forma a internet é uma aliada cada vez mais importante aos comuneiros. Tanto na criação de possibilidades de conexão com diferentes pessoas de uma comunidade, quanto na disponibilização de plataformas e recursos para o desenvolvimento daquilo que for comum para essa comunidade.
Por outro lado, existe um debate acerca da noção de democracia na internet, criada no neoliberalismo da década de 1990 juntamente com o desenvolvimento tecnológico de softwares, computadores, programas e da própria internet. A proposta de criar um ambiente sem regulamentação estatal é em si uma ideia comum, contudo, para o seu melhoramento e a sua manutenção, a internet começou a seguir um modelo de governança privada. Empresas como Google, Meta, Amazon, dentre outros, regularizam a internet, tornando aquilo que em teoria era democrático em um monopólio de empresas predominantemente estadunidenses. A partir disso, é possível discutir sobre protocolos e algoritmos em seu papel como dificultadores da criação de um espaço comum na internet.
Para concluir: o debate acerca da internet e seus recursos é extenso e muitas vezes contraditório. Contudo, em relação ao comum, é possível afirmar que apesar da internet não ser diretamente um recurso partilhado como um comum nos termos acima referidos, ainda assim é uma ferramenta indispensável para a organização de lutas sociais das comunidades.
Também pode-se vincular a ideia do comum à realidade urbana, em especial à discussão da paisagem e das vivências urbanas como direitos dos cidadãos. Henri Lefebvre reconhece que “[...] [h]oje, mais do que nunca, a luta de classes está inscrita no espaço. [...]” (1991, p. 55, tradução nossa) e, portanto, podemos encontrar a apropriação do comum como um contraponto aos avanços neoliberais, em especial da ameaça imposta pelo mercado imobiliário. Nesse sentido, retomamos o estudo de Lúcia Veras (2014, p. 81), que afirma:
[...] [A] paisagem é produto de uma experiência emocional da contemplação, da visão que recorta da natureza o território da vida do homem. Neste sentido, a sua criação é uma operação cultural, não necessariamente processada pelo intelecto, mas pela vivência de quem a constrói no curso da história.
Podemos, então, compreender a luta vivida pelos recifenses vinculados ao Movimento “Ocupe Estelita” como uma reinvindicação do meio urbano enquanto bem comum, e em especial da paisagem (tanto em seu aspecto visual quanto num sentido vinculado à apropriação espacial, relativo às vivências compartilhadas e acolhidas pela configuração do espaço). Tal movimento surgiu após a venda em leilão de uma gleba às margens do Rio Capibaribe, no Recife, a construtoras que assumiram como projeto a construção de condomínios de luxo.
Figura 1
Cidade para quem? - colagem digital dos autores sobre a manifestação “Ocupe Estelita” em Recife.
Esses empreendimentos podem ser compreendidos como figuras centrais no avanço do neoliberalismo nas grandes cidades brasileiras. O movimento cresceu a partir de uma ampla indignação com a proposta e teve grande adesão social, levando a um processo que envolveu a participação de variados agentes sociais e ampliando a discussão a âmbito nacional. Como comentado por uma das moradoras da comunidade do Coque, próxima ao empreendimento, no documentário “Recife, Cidade Roubada” (2014): “Nós temos direito de fazer parte, de construir tudo o que vai ser feito. Nós temos direito de fazer parte daquela imagem, daquela cena, daquela paisagem. A gente tem direito de viver, de passar uma tarde com nossos filhos [...]”.
remissivos
referências
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Tradução: Marina Echalar. São Paulo: Boitempo, 2017.
FEDERICI, Silvia. O feminismo e as políticas do comum em uma era de acumulação primitiva. Tradução: Luiza Mançano. In: MORENO, Renato (org.). Feminismo, economia e política: debates para a construção da igualdade e autonomia das mulheres. São Paulo: SOF Sempreviva Organização Feminista, 2014. p. 145-158. Disponível em: http://www.sof.org.br/wp-content/uploads/2015/08/Economia-e-poli%CC%81tica-web.pdf | Acesso em: 11 fev. 2022.
FEDERICI, Silvia; VALIO, Luciana Benetti Marques. Na luta para mudar o mundo: mulheres, reprodução e resistência na América Latina. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 2, p. 1-12, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n270010 | Acesso em: 15 fev. 2022.
GHIONE, Roberto. Ocupe Estelita. Idade Média, ontem e hoje. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 167.02, Vitruvius, jun. 2014. Disponível em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.167/5193 | Acesso em: 13 abr. 2022
HARDIN, Garret. A tragédia dos comuns. Tradução: José Roberto Bonifacio. Rio de Janeiro: [s.n.], 10 mai. 2011. [Tradução livre de artigo publicado originalmente na revista Science, v. 162, n. 3859, dez. 1968]. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5603756/mod_resource/content/1/A_TRAGEDIA_DOS_COMUNS_por_Garrett_Hardin.pdf | Acesso em 20 fev. 2022.
LEFEBVRE, Henri. The production of space. Tradução: Donald Nicholson-Smith. Oxford; Cambridge, MA: Blackwell, 1991.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Tradução: Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo, 1998.
OSTROM, Elinor. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
RECIFE, Cidade Roubada. Realizadores: Ernesto de Carvalho, Leon Sampaio, Luis Henrique Leal, Marcelo Pedroso e Pedro Severien. Recife: Movimento Ocupe Estelita. 2014. 13 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dJY1XE2S9Pk | Acesso em 15 fev. 2022.
TONUCCI FILHO, João Bosco Moura. Comum urbano: a cidade além do público e do privado. 2017. 244 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/IGCC-B9BM6M | Acesso em: 22 mar. 2022.
VERAS, Lúcia. Paisagem-postal: a imagem e a palavra na compreensão de um Recife urbano. 2014. 467 f. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Urbano) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/13174 | Acesso em: 10 fev. 2022.