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glossário

FUNDAMENTALISMO

[...] O fundamentalismo é uma questão de textualidade. É uma tentativa de validar nosso discur-so apoiando-o no padrão-ouro da Palavra das palavras, vendo Deus como o avalista final do significado. Significa aderir estritamente ao roteiro. É um medo do não-escrito, improvisado ou indeterminado, assim como um horror a excesso e ambiguidade. [...]

[...] O fundamentalismo é uma espécie de necrofilia, apaixonado pela letra morta de um texto. [...]

EAGLETON, Terry. Depois da teoria: um olhar sobre os Estudos Culturais e o pós-modernismo. Tradução: Maria Lucia Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. [ p. 271; 276]

Anni Correia Caetano

Isabela Firmo Drumond

Vinícius Goulart Silvério

A origem do termo “fundamentalismo” veio dos títulos de uma série de livretos chamados de “The Fundamentals: A Testimony of Truth”. Sua primeira definição data de 1920, feita por um pastor americano da Igreja Batista, Curtis Lee Laws, que descreveu o fundamentalismo como o ato de alguém que está disposto a recuperar territórios perdidos para o que eles consideram como anticristo e “lutar pelos fundamentos da fé” (ARMSTRONG, 2009). Lançando uma perspectiva histórica sobre o termo, o fundamentalismo iniciou como uma série de protestos religiosos e teológicos, no contexto de oposição ao liberalismo no período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial. O propósito desses movimentos estava em fazer oposição às tendências liberais das escolas religiosas e protestantes que davam abertura para discursos científicos e que “[...] se opunham às teorias fixas sobre a inspiração das Escrituras, favorecendo antes o uso da crítica histórica e da aplicação das descobertas da ciência que envolvam algo nas crenças religiosas [...]” (CHAMPLIN, 1997). Os fundamentalistas se opunham aos liberais, que em sua visão chegaram a subestimar e até mesmo negar o poder da revelação divina, uma postura que indicaria uma contradição pela ótica cristã.

Se o fundamentalismo [...], que é oposto do liberalismo, continua a confiar nas revelações da Bíblia, assentando as suas crenças essencialmente na Palavra escrita de Deus, o liberalismo assevera que essas revelações apesar de conterem alguma verdade, não podem ser consideradas a base de toda a verdade” e ainda “Do mesmo modo que a maldição do liberalismo é o ceticismo, assim também a maldição do fundamentalismo é o espírito contencioso. (CHAMPLIN, 1997, p. 828)

A principal contribuição apontada por esse movimento foi de “alertar as pessoas sobre inúmeros erros que haviam entrado na cena religiosa” (CHAMPLIN, 1997), além de exibir a falta de compatibilidade básica entre o sistema político comunista e os ideais e crenças cristãos. Entretanto, vários teólogos e religiosos afirmam a existência da postura de ataque por parte dos fundamentalistas nos debates contra ideais liberalistas e comunistas, reconhecendo os primeiros como culpados de um espírito que incita uma intensa desconfiança. A campanha fundamentalista assume uma expressão de batalha dentro de um contexto doutrinal e exegético abastecida por uma realidade de acalorados debates teológicos. Tal expressão acabou migrando, principalmente através da imprensa, para campos de intolerância e ações violentas, praticadas por pessoas mais preocupadas em seguir preceitos partidários/ ideológicos do que com fundamentos religiosos.

[...] Por isso, é preciso diferenciar a defesa de doutrinas e dogmas religiosos, que permanecem no campo de debate, de ações violentas.

Um caminho possível é conhecer as ideologias que se servem das doutrinas religiosas para tais fins. Foi o caso, por exemplo, dentro do catolicismo irlandês, do grupo terrorista IRA. Esse grupo paramilitar católico que pregava a agenda política de separação da Irlanda do Norte do Reino Unido valia-se de atos terroristas e outras ações violentas, que eram alimentados por um discurso político misturado com a doutrina católica.

Nos EUA, o caso da Ku Klux Klan também é emblemático, já que tal “clã” era uma seita que misturava ideologias raciais e eugenistas com protestantismo puritano. O caráter de seita era evidente na KKK, com o uso de túnicas, capuzes e cruzes flamejantes.

Outro caso é do wahhabismo islâmico, desenvolvido no século XVIII, que desembocaria em associações como a Irmandade Muçulmana, fonte intelectual de muitos terroristas islâmicos, como o Osama Bin Laden. (FERNANDES, [2022])

No contexto da política brasileira o fundamentalismo religioso já existente se intensificou agressivamente na primeira metade da primeira década do século XXI após reinvindicações de direitos negados a grupos minoritários.

Parece-me, em segundo lugar, que essa virulência e essa urgência foram dramatizadas pela extensão e pela profundidade do avanço das demandas minoritárias no pós-2003 : feministas (ações de promoção de igualdade de gênero em várias áreas de governo); afrodescendentes (estatuto da igualdade racial); religiosas (novo Código Civil e várias concessões nas políticas sociais e culturais); LGBTs (lei contra a homofobia; terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos); ativistas sociais (Política Nacional de Participação Social). [...] (BURITY, 2018, p. 28)

O termo fundamentalismo apresenta diversas controvérsias no que tange a sua definição no meio acadêmico. Além de ser usado larga e indiscriminadamente por veículos midiáticos e desde em discursos políticos a conversas de bar. Mais comumente atrelado ao religioso, o fundamentalismo é um fenômeno arraigado em seu contexto: a Modernidade.

O fundamentalismo religioso surge em grupos minoritários que à medida em que ganham mais adeptos e influencia política começam a atacar outros grupos minoritários, o denominado “[...] acirramento da disputa com outros atores minoritários igualmente beneficiados pelo processo de democratização brasileiro – mulheres, pessoas negras, indígenas e minorias sexuais, entre outros.” (BURITY, 2018, p. 16). Nessas circunstâncias um grupo social é especialmente perseguido: as pessoas negras  e as manifestações culturais ligadas a elas, esses grupos são atacados em vários contextos: religioso, político, etc. A violência ganha várias formas: as simbólicas visam reafirmar valores cristãos e as mais explícitas são também negadas por seus praticantes que reafirmam valores colonizadores eurocêntricos.

“Conservadorismo” é o movimento de defesa de costumes, valores e hierarquias da sociedade tradicional. Conformou-se junto e em reação à modernidade, com adeptos em toda parte e de muitos naipes. Conservadores para todo gosto: os devotados à moralidade e os aferrados à e midiáticos, os que preferem as urnas e os que elegem as armas.

[...] Vê, por exemplo, políticas de estado (caso de programas redistributivos) como fonte de disfunção na gestão da coisa pública (a corrupção), e a efetivação de leis protetoras de direitos de minorias (vide casamento entre pessoas do mesmo sexo) como atentado à família (ALMEIDA, 2018)

Em “Intolerância religiosa: feminismos plurais”, Sidnei Nogueira trata da ligação entre política, fundamentalismo religioso cristão e racismo. O Fundamentalismo ora se apresenta de formas mais sutis, apagando outras narrativas, assumindo uma visão única por meio de ações inconstitucionais não laicas, presumindo e impondo a obrigação da validação monoteísta de um deus específico produzido para suprir a demanda de uma sociedade eurocêntrica, supremacista branca, supremacista masculina, heteronormativa e LGBTQIA+fóbica; ora é mais violenta embora nem sempre declarada, por meio de destruição de patrimônio material ou simbólico, ou ataques verbais que seguem as mesmas diretrizes colonialistas e seus mitos civilizatórios. Dentre as ações inconstitucionais que são promovidas pelo estado pseudo-laico estão as campanhas cristãs de promoção de cidades.

Hoje, ao entrar em cidades como Paraty, Mauá, Sorocaba, entre outras pelo Brasil afora, você encontrará a normatização de um movimento “cristãocêntrico” fortalecido por meio de frases de conversão de massa e exclusão de religiões tidas como inferiores e menores. “Jesus Cristo é o senhor de Mauá”, “Paraty pertence a Jesus” e “Sorocaba é do senhor Jesus Cristo” são alguns dos exemplos de um movimento absolutamente etnocêntrico e da promiscuidade entre o público e privado-religioso. (NOGUEIRA, 2020, p. 17)

Quando se promove uma religião de forma a apagar outras aqueles que acreditam naquelas crenças são validados pelo  estado e pelo poder público nesse processo de silenciamento de narrativas o lugar das religiões de matriz africana é apagado sistematicamente , seja pelo estado que com sua visão neutralizante elege a perspectiva da branquitude para sistematizar dados ou pelos adeptos que podem responder a intolerância religiosa não se declarando como sendo pertencente de uma religião CTTro (Comunidades Tradicionais de Terreiro). É nesse contexto que o Estado apaga a negritude, quando as denúncias de intolerância religiosa são mal apuradas podendo não conter se quer uma informação básica , central e crucial para apurar dados e pensar políticas públicas, um uma grande parte dos casos a religião da vítima é omitida.

Os dados nacionais do Disque 100 (BRASIL, 2019) evidenciam a religião mais perseguida no Brasil. Em 2011, das 15 denúncias, houve um incidente com candomblé e 11 com religião não informada; em 2012, 109 denúncias, sendo 13 de CTTro14 e 71 sem religião informada; em 2013, das 231 denúncias, 45 de CTTro e 121 sem religião informada; em 2014, das 149 denúncias, 41 delas se referem às CTTro (aparece uma denúncia para Tambor de Mina) e 50 sem religião informada; em 2015, foram 556 denúncias, das quais 394 sem religião informada e 46 referentes às CTTro; em 2016, o Disque 100 apresentou o maior número de denúncias desde o primeiro ano do balanço, com 759 denúncias.(NOGUEIRA, 2020, p. 37).

[ jun. 2022 ]

O racismo precisa ser enfrentado diante da dimensão que ocupa nas sociedades ocidentais, considerado enquanto elemento negado mas não menos ausente na própria formação do chamado Ocidente. Tampouco trata-se de um problema único ou isolado, evidentemente, mas quando uma sociedade é especista e apenas as práticas das populações negras são criticadas, temos aí um processo de racionalização daquilo que já se pretendia fazer, isto é, promover a manutenção das hierarquias sociais já existentes. Quando vemos a militância, a intelectualidade e outras formas de agência política negra se defenderem e apontarem para outros atores sociais que podem subjugar, impunemente, outros seres, estamos diante de uma reivindicação do status do humano, a exemplo da luta por respeito a tradições afro-centradas. A imiscuição do racismo em muitas esferas da vida pública cria empecilhos mesmo para o reconhecimento e apreciação das heranças de culturas de origem africana. Apesar da fetichização da história da África enquanto alternativa ao eurocentrismo imperialista, precisamos conhecer – cada vez mais – as histórias da diáspora e seus desdobramentos alinhados ao estudo de personagens suprimidos pela história hegemônica e o investimento em potências negras que já contribuem intensamente e seguirão pautando as formas institucionais, as táticas e estratégias necessárias para a constituição de politicas emancipadoras antirracistas.

remissivos

referências

ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. Tradução: Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

BURITY, Jovanildo. A onda conservadora na política brasileira traz o fundamentalismo ao poder?. In:

ALMEIDA, Rômulo de; TONIOL, Rodrigo (org.). Conservadorismo, fascismos e fundamentalismos: análises conjunturais. Campinas: Editora Unicamp, 2018. p. 15-66.

CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia, v.2 e 3. Tradução: João Marques Bentes. São Paulo: Candeia, 1997.

EAGLETON, Terry. Depois da teoria: um olhar sobre os Estudos Culturais e o pós-modernismo. Tradução: Maria Lucia Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

FERNANDES, Cláudio. O que é fundamentalismo?. Mundo Educação. [S.l.]: [s.n.], [202?]. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/filosofia/fundamentalismo.htm. Acesso em: 15 abr. 2022.

NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen Livros, 2020. (Série Feminismos Plurais).

VAINER, Carlos Bernardo. As escalas do poder e o poder das escalas: o que pode o poder local?. Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, ano XVI, n. 1, 13-32, jan./ jul. 2002. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ippur/issue/viewFile/281/91. Acesso em: 15 abr. 2022.

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