glossário
OCUPAÇÕES
Colagem digital de Ana Clara Moura de Almeida
Colagem digital de Alexandre Isaías de Araújo
Colagem digital de Rubens Rodrigues Vargas
Colagem digital de Ana Clara Moura de Almeida
Primeiramente as ocupações são uma forma de disputa econômica que, por seu enfrentamento com a “sacrossanta” propriedade privada, se tornam em vários momentos, lutas eminentemente políticas, tornando-se uma espécie de instrumento dos trabalhadores pelo direito à cidade. Nossa aliança com os setores progressistas da arquitetura, do direito e de outras áreas do conhecimento, contribui para potencializar ainda mais essa inserção das ocupações na area política.
PÉRICLES, Leonardo. Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas. In: NASCIMENTO, Denise Morado (org.). Saberes [auto]construídos. Belo Horizonte: Associação Imagem Comunitária, 2016. p. 121-123. [ p. 122 ]
Alexandre Isaías de Araújo
Ana Clara Moura de Almeida
Rubens Rodrigues Vargas
O dicionário Houaiss apresenta o vocábulo “ocupação” como “1 ato de apoderar-se de algo ou de invadir uma propriedade; posse 2 ato de trabalhar em algo; o próprio trabalho a ser executado ou que se executou; serviço” e, numa sexta uma última acepção, do campo jurídico, o termo é apresentado como “modo de aquisição da propriedade de coisa móvel sem dono ou abandonada; apropriação” (HOUAISS; VILLAR, 2008, p. 2049). Vale ressaltar, como afirma Tiago Castelo Branco (2014), que a conceituação do termo vai além da questão semântica, pois diz respeito ao sentido de legitimidade de uma mobilização, fazendo alusão à obrigatoriedade do proprietário de um imóvel de exercer a função social do mesmo, segundo a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade de 2001. Olhando pela perspectiva da reforma urbana, ressalta-se ainda mais a importância dos movimentos de resistência, visto que eles são contrários ao modelo hegemônico neoliberal que intervém diretamente no campo socioeconômico e que preserva e concentra interesses que se expressam no espaço da cidade e das ocupações, em especial no campo da habitação. Denise Morado Nascimento lança uma perspectiva de como as Ocuoações ganham relevância nas práticas em Belo Horizonte:
[...] À cidade, são impostas políticas de produção massificada de condomínios privados sem urbanidade e de higienização de territórios já ocupados. Em razão dessa ineficiência da gestão pública e da intensificação da carestia da vida urbana na RMBH, os movimentos sociais passam a se orientar pela maior efetivação e legitimação das ocupações urbanas, objetivando promover alternativa à provisão habitacional para os pobres. (NASCIMENTO, 2016b, p. 152)
A ocupação, por definição, refere-se a espaços que estão sem uso, sem cumprir com sua função social. Isso posto, é de suma importância estabelecer a diferenciação entre ocupação e invasão. A última se associa a um ato ilegítimo, que toma a força um espaço utilizado por outros, desrespeitando não só a lei, mas regras tácitas de convívio humano (LOURENÇO, 2014). O ato de ocupar uma terra urbana proporciona benefícios imediatos aos ocupantes e a toda a cidade, visto que os lugares ocupados servem apenas para propósitos especulativos, sem função social. Tal ação faz cumprir um direito constitucional, pois "uma propriedade privada que não atende aos ditames da lei não pode ser protegida por essa mesma lei. [...]” (LOURENÇO, 2014, p. 31).
O planejamento e organização de uma ocupação urbana, apresentado por movimentos sociais com discursos e finalidades estruturadas, é também cerne da distinção entre ocupação e favela, uma vez que nesta não ocorre a construção de um discurso para que se legitime a situação ilegal, por mais que a motivação de moradia no contexto de falta de meios institucionais na cidade. Feitas essas distinções, conclui-se que, independentemente dos modos e dos motivos em que são concebidas, as ocupações revelam a carência, principalmente da parcela mais pobre da população, por moradias e investimentos, e é nesse contexto que é interessante apresentar diferentes tipos de ocupações, como a Vila Soma, em São Paulo, e o Mercado Sul, em Taguatinga-DF. Partindo de concepções e propósitos diferentes, ambas constituem lutas que reivindicam os mesmo direitos.
Figura 2
Moradores na Vila Soma. Fonte: https://liberal.com.br/cidades/sumare/vila-soma-a-caminho-da-regularizacao-1267274/
A Vila Soma, em São Paulo, é uma experiência de ocupação urbana que evidencia o déficit habitacional e a necessidade de políticas habitacionais. Faz parte da ação de movimentos sociais que se opõem ao governo e à cidade neoliberal, que se descomprometem cada vez mais com o livre acesso à moradia e à própria cidade (COSTA, 2019). Essa ocupação é habitada por 2.658 famílias, totalizando mais de 10.000 moradores, sendo uma das maiores ocupações originadas em área urbana no Brasil. Sem nenhum tipo de projeto de moradias e composições urbanas antecedentes, a Vila Soma nasceu espontaneamente e comportou diversas famílias que tinham a necessidade de habitação, criando dentro dela movimentos de resistência que buscaram solidificar sua organização, visto que a demanda pelos mandatos de reintegração de posse enviados pelo Estado era crescente, instituindo-se posteriormente como uma organização coletiva e política. Para o pesquisador André Costa, em tese de doutorado sobre esta e outras ocupações, a discussão vai além do âmbito do Planejamento Urbano, um reconhecimento que, a essa altura, também é referendado por instituições como a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a partir de um Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo: [...] Há também em discussão um grave déficit habitacional, que serviu de mote à ocupação da Vila Soma. O déficit habitacional atinge frontalmente o direito constitucional à moradia destes cidadãos, que estão definitivamente excluídos do mercado formal imobiliário [...] (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2014 apud COSTA, 2019, p. 93)
Uma particularidade dessa ocupação é que, diferentemente de outras ocupações também em São Paulo, como Zumbi dos Palmares e Pinheirinho, ela foi originalmente concebida em terra urbana, o que a valoriza de certa forma, visto que quanto mais periférico for o terreno, menos ele é valorizado e rentável (COSTA, 2019). Isso torna a localização da Vila Soma importante devido a esses aspectos, visto que o terreno é interesse de investimentos de muitas empresas, gerando tensões sobre disputa de território de forma mais evidente. No geral, as regiões centrais da cidade de São Paulo não são habitadas por populações de baixa renda como acontece na Vila Soma, constituindo um centro de capital que é repleto de infraestruturas como transportes, serviços, equipamentos, oportunidades de trabalho e geração de renda mas que é utilizada apenas pela parcela mais rica da população, excluindo as periferias que englobam a classe de pessoas que faz tudo isso acontecer mas que não ocupa e nem usufrui dessa infraestrutura, mesmo com tantos imóveis ociosos, restando a eles habitar na informalidade que os poderosos tanto condenam.
O centro não tem a população que se imagina. O Centro é uma servidão de passagem para sistemas de transporte idiotas, no qual virou ponto final de todos os sistemas de ônibus. Então, aquela gente que passa no Centro, para ir de um lado para o outro pegar condução, aquela massa popular que até é geradora de camelôs e de interesses, não tem nada a ver com o Centro. O popular do Centro é o que está prejudicado por isso aí, que é o bancário, o comerciário, que é funcionário público. Esses sim, nós temos que respeitar. (FRÚGOLI JR., 2006, p. 86)
O Mercado Sul, em Taguatinga-DF, também se formou com uma ocupação com questões sociais que revelam a falta de comprometimento do poder público com as iniciativas populares que demandam por assistência. Construído na década de 1950 para servir de abrigo para feiras, mercados e armarinhos, o espaço sofreu com a supervalorização do Centro de Brasília, que acabou por deixar de lado os investimentos que serviam o espaço e os destinando apenas para o polo urbano e comercial da capital, fazendo com que o espaço perdesse incentivo e obrigando inúmeros lojistas a fecharem as portas, marcando a paisagem do espaço pela indiferença. Em 7 de fevereiro de 2015 foi iniciado um movimento cultural que, juntamente com seus colaboradores, passaram a reivindicar as lojas abandonadas e ruas ociosas, buscando seus direitos sobre o espaço da cidade que foi abandonado, mas que, por ser uma ocupação periférica, não atrai os interesses do mercado imobiliário, resultando na falta de interesse de investimentos. Apesar disso, como muitas ocupações espalhadas pelo Brasil, os moradores apelam aos movimentos sociais que demandam por direito à cidade e à vida, promovendo ações coletivas e culturais que atraiam atenção e interesse para o reconhecimento da área, visando recuperar o espaço que se tinha e ressaltando a importância que grupos e movimentos sociais têm na reintegração de um lugar.
Há quem defenda a apropriação da cidade por esses grupos sociais, as iniciativas do movimento sem teto de ocupar os imóveis vazios em áreas centrais não passaram em branco. Nas últimas décadas com o esvaziamento populacional devido ao dinamismo econômico, foram gerados vários debates sobre a requalificação das áreas centrais das cidades, acarretando uma grande visibilidade para as políticas de intervenções e ações realizadas. Exemplo disso é o centro da capital paulista, que com a colaboração da iniciativa privada da Associação Viva o Centro, intermediou acordos entre as entidades privadas e o poder público para mudar a forma como a região era habitada, fazendo com que diversas tipologias como bancos e grandes empresas migrassem para outros subcentros.
A política que trata as ocupações urbanas como originárias de uma ilegalidade entra em contradição ao colocar o direito à moradia e à propriedade como um direito de todo cidadão. O Estatuto da cidade enfatiza esse direito e ordena ações de interesse social para a coletivização das cidades. Tratar as ocupações como uma exceção à regra e adotar sobre elas questões jurídicas não é mais aplicável, pois elas se tornaram e se tornam cada vez mais comuns nas cidades, onde a sociedade civil está sempre em busca de sua democratização e não da mercantilização dos espaços urbanos e das relações sociais
[ jun. 2022 ]
O envolvimento de profissionais do Direito e da Arquitetura com a temática das ocupações urbanas colocou o conflito com uma nova fisionomia na arena política institucionalizada. É importante destacar que ela sempre esteve lá, até porque as ocupações urbanas sempre caracterizaram a urbanização das cidades brasileiras, porém, o envolvimento desses profissionais, pela importância que eles assumem na fundamentação do sistema capitalista, coloca a questão a partir de instrumentos institucionalizados que neste caso serão aplicados com a intenção de garantir o direito à cidade e à moradia para um setor social que não tem acesso. (LOURENÇO, 2016, p. 130)
remissivos
referências
COSTA, André Dal'Bó da. Luta social e a produção neoliberal do espaço: as trajetórias das ocupações Vila Soma, Zumbi dos Palmares e Pinheirinho. 2019. 324 f. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2019. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/102/102132/tde-03082020-151424/en.php | Acesso em: 18 abr. 2022.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. [reimp.]. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
LOURENÇO, Tiago Castelo Branco. Cidade ocupada. 2014. 232 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Núcleo de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/BUOS-9QRGL5 | Acesso em: 18 abr. 2022.
LOURENÇO, Tiago Castelo Branco. Arquitetos Sem Fronteiras. In: NASCIMENTO, Denise Morado (org.). Saberes [auto]construídos. Belo Horizonte: Associação Imagem Comunitária, 2016. p. 125-132.
MERCADO Sul é patrimônio. Mercado Sul. Taguatinga, 1º nov. 2021 Disponível em: https://www.mercadosul.org/comunicado-n-02-2021-mercado-sul-e-patrimonio/ | Acesso em: 18 abr. 2022.
NASCIMENTO, Denise Morado (org.). Saberes [auto]construídos. Belo Horizonte: Associação Imagem Comunitária, 2016a.
NASCIMENTO, DENISE Morado. As políticas habitacionais e as ocupações urbanas: dissenso na cidade. Cadernos Metrópoles, São Paulo, v. 18, n. 35, p. 145-164, abr. 2016b. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2236-9996.2016-3507 | Acesso em: 18 abr. 2022.
NEUHOLD, Roberta dos Reis. Os movimentos e moradias sem teto e as ocupações de imóveis ociosos: a luta por políticas públicas habitacionais na área central da cidade de São Paulo. 2009. 164 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-09022010-130648/pt-br.php | Acesso em: 18 abr. 2022.
PÉRICLES, Leonardo. Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas. In: NASCIMENTO, Denise Morado (org.). Saberes [auto]construídos. Belo Horizonte: Associação Imagem Comunitária, 2016. p. 121-123.
RODRIGUES, Thaís. Mercado Sul, em Taguatinga, se torna exemplo de resistência cultural. Metrópoles, 2016. Disponível em: https://www.metropoles.com/entretenimento/mercado-sul-em-taguatinga-se-torna-exemplo-de-resistencia-cultural?amp| Acesso em: 27 abr. 2022.