glossário
REGIÕES ADMINISTRATIVAS, 1960-1989
Um mapa de 1963 [...] mostra o Plano Piloto e as quadras junto ao lago Paranoá separados – por estradas-parque e pela faixa sanitária – de um território circundante onde se veem as cidades-satélites de Taguatinga, Gama, Sobradinho, Núcleo Bandeirante e Planaltina, em meio a grandes lotes de parcelamentos rurais e sedes de granjas-modelo [...]. Apesar da proximidade do Núcleo Bandeirante ao Plano Piloto, o mapa ainda permite ver o paradigma da cidade central separada das cidades-satélites por espaços verdes, o que dificilmente se sustentaria nos anos seguintes [...].
DERNTL, Maria Fernanda. Brasília e seu território: a assimilação de princípios do planejamento inglês aos planos iniciais de cidades-satélites. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 22, n. 47, p. 123-146, jan./abr. 2020. [ p. 141 ]
Regiões Administrativas do Distrito Federal e suas placas verdes. Produzido por Letícia Moura Pessoa.
Letícia Moura Pessoa
Luisa Castellano
[ Fig. 1 ]
Mapa indicando a distância entre Regiões Administrativas do Distrito Federal e o Plano Piloto – cada círculo com 6 km de diâmetro. Produzido por Letícia Moura Pessoa.
[ jan. 2022 ]
remissivos
Quando decidiu-se por construir uma nova cidade Capital no Planalto Central, o litoral encontrava-se mais estabelecido do ponto de vista econômico, político e social, enquanto o Oeste, o interior do Brasil, permanecia pouco povoado e sem intensa atividade produtiva. Construiu-se a necessidade de finalizar a execução de Brasília no menor intervalo de tempo possível. A implantação de rede de estradas em direção às capitais estaduais transmitiu uma noção de progresso, um incentivo a novos empreendimentos ao redor da cidade. A nova capital e as cidades-satélites desenvolveram na região um centro consumidor, além da agricultura, da pecuária e da indústria de sustentação. Buscava-se, assim, uma unidade nacional integrada.
O processo de urbanização do Planalto Central acelerou-se com a política de ocupação do interior conhecida como “Marcha para o Oeste”. Tratava-se de um plano de integração nacional e do desenvolvimento de uma rede de cidades numa área historicamente pouco adensada em povoamento. A conexão da região central, por meio de um sistema de estradas de rodagem, com as regiões Sul e Sudeste, conferiu importante apoio à mudança da capital, pensada como centro da comunicação nacional.
O plano de Lucio Costa para a nova capital brasileira previu a expansão da cidade por meio da criação de cidades-satélites. Maria Fernanda Derntl (2018) reconhece essa formação, caracterizando Brasília como uma metrópole “[...] composta por um sistema urbano interligado, de caráter esparso e polinucleado, dominado por um centro, o Plano Piloto, com diversos assentamentos periféricos, as cidades-satélites”. Tal previsão, como se sabe, não foi bem estruturada e, muito frequentemente, essas cidades foram apontadas como uma prova do insucesso da construção de Brasília. Ainda de acordo com Derntl: “[...] Em livros gerais de história da arquitetura e do urbanismo, não é incomum que as cidades-satélites estejam associadas ao não planejado, ou a favelas.” (DERNTL, 2018, grifo da autora).
Para Jusselma Duarte Brito (2009), o Plano Piloto possui uma concepção urbanística rodoviária com foco na circulação de veículos. Embora configure-se como o principal centro urbano de Brasília, representa a menor parcela de um aglomerado classificado como a terceira maior metrópole nacional, num cenário de expansão acelerada. Planejou-se um modelo de ocupação baseado em uma cidade central que deveria ser ampliada pelo acréscimo de novos núcleos urbanos (Fig. 1). Como nos lembra Panerai (2006, p. 174), o desenvolvimento da região, na prática, exigiu que se fizesse uma reorganização. De fato, em 1965, o Distrito Federal foi dividido em oito Regiões Administrativas, possibilitando novos polos de desenvolvimento.
Segundo a Companhia de Planejamento do Distrito Federal (CODEPLAN), os bairros Lago Norte e Lago Sul são partes do projeto de Lucio Costa para o Plano Piloto (COMPANHIA DE PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL, 2019d; 2019e). No Lago Norte, previram-se moradias individuais e o centro de atividades para uso comercial e institucional, bem como edifícios multifamiliares. O Lago Sul, por sua vez, originou-se com as obras de represamento da usina hidrelétrica, do aeroporto e da Base Aérea de Brasília. Sua ocupação se deu com a construção da Ponte das Garças, em 1974, e da Ponte Honestino Guimarães, em 1976. É considerada uma área nobre de Brasília, ocupada por famílias de alta renda e registra bons índices de qualidade de vida. Ambos os bairros não estão incluídos na poligonal de tombamento do conjunto urbanístico de Brasília, mas fazem parte de sua zona de influência e apresentam estrutura urbana consolidada, com o predomínio da habitação unifamiliar em lotes maiores e mais espaçados, mansões e edifícios comerciais de uso misto. Em menor quantidade, encontram-se usos como shopping centers e clubes, além de habitação multifamiliar no Lago Norte. Além destes, o Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek também encontra-se inserido no Lago Sul.
O Gama foi um dos primeiros núcleos urbanos criados em decorrência do modelo de ocupação polinucleada, no qual trabalhadores alojados no Plano Piloto ou proximidades foram transferidos para locais mais distantes. A Região Administrativa (RA) possui grande quantidade de edifícios multifamiliares, principalmente na área central, e de residências unifamiliares no modelo de casas geminadas na região periférica. Conta-se, ainda, com comércio local, quiosques, um shopping no centro local e um estádio, porém apresenta muitos espaços vazios e subutilizados (COMPANHIA DE PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL, 2019b).
Ceilândia foi uma cidade-satélite criada em 1971, originada a partir da Campanha de Erradicação das Invasões (CEI), para a acomodação da população menos favorecida no entorno do Plano Piloto. Ney Gabriel, arquiteto e urbanista dos quadros da Novacap, foi o responsável pelo plano urbanístico da cidade (COMPANHIA DE PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL, 2019a). De acordo com Elane Peixoto, Waldvogel e Oliveira (2021), 80 mil pessoas foram instaladas em pouco tempo, por meio da construção de casas provisórias, que deveriam ser substituídas por casas definitivas. Para a construção das provisórias, houve o uso de materiais precários, o que atesta um quadro de apoio insuficiente para a população. Nota-se que a RA possui um caráter habitacional, com a predominância de residências unifamiliares, mas também de edifícios multifamiliares, além do Setor Industrial. A precariedade das construções em inúmeras outras cidades-satélites também é constatada nos estudos de Maria Fernanda Derntl. Segundo a autora:
[...] São traçados concebidos segundo os paradigmas modernistas do Plano Piloto, mas com grandes diferenças no modo de efetivá-los. Nesses planos, predominam as baixas densidades, em superquadras ocupadas por lotes para casas unifamiliares. São planos de arruamento essencialmente, para núcleos que demoraram a contar com serviços de água, esgoto ou energia elétrica. Estima-se que até meados da década de 70, redes de esgoto em larga escala só existiam no Plano Piloto e seu entorno imediato. [...] (DERNTL, 2016, p. 8)
Dessa maneira, é possível perceber uma semelhança entre as diversas formas de ocupação, segundo Derntl:
[...] [A]pesar das suas distintas origens – acampamento de obras, novos subúrbios ou povoado existente – mantiveram-se princípios similares na sua organização. Muitos planos, pouco planejamento. Apenas em meados dos anos 70 observam-se ações mais articuladas no sentido de um planejamento territorial do Distrito Federal. Em 1974, no I Seminário de Estudos dos Problemas Urbanos de Brasília, a necessidade de planejamento é a tônica dos debates e aparece com força o problema das cidades-satélites. No mesmo ano, um levantamento de “invasões” existentes no DF mapeou 14 áreas ocupadas por barracos, muitas delas nas imediações de cidades-satélites. O estudo considera que muitas dessas invasões tinham tido início em fins dos anos 50 em razão, em grande parte, da mudança de famílias que não tinham como pagar os aluguéis nas cidades-satélites, mas ainda utilizavam seu comércio e serviços. [...] (DERNTL, 2016, p. 10)
Esse fato demonstra como o modelo de organização social, desde sua concepção, consiste na articulação entre um centro – rico – e uma periferia – pobre. As áreas periféricas, como em outras grandes metrópoles brasileiras, não contam com bom atendimento de serviços públicos, de planejamento e de mecanismos capazes de melhorar a qualidade de vida dos habitantes das cidades-satélites.
Jusselma Brito, em sua tese de Doutorado, discorre sobre investimentos financiados pelo governo na área de abastecimento, saneamento e energia elétrica nos anos 1960. Com a construção da barragem no Córrego Paranoazinho, que viria abastecer as regiões de Sobradinho e o Setor de Mansões Suburbanas Park Way e o “grande avanço de trabalhos em áreas anexas às Asas do Plano Piloto”, fica claro que algumas regiões eram mais favorecidas que outras, recebendo mais capital (BRITO, 2009, p. 121). Ainda de acordo com Brito, “[o]bras de esgoto, começadas ainda em 1963, no então denominado Setor Residencial Indústria e Abastecimento (SRIA), preanunciaram a implantação do Guará nos anos seguintes”, com o desenvolvimento de locais destinados a compras, visando constituir uma centralidade voltada ao consumo. Dessa maneira, é possível perceber que as áreas mais próximas ao Plano Piloto e, consequentemente, mais valorizadas, receberam mais atenção por parte do Estado, fazendo com que regiões mais afastadas sofressem com um atraso nos processos de urbanização.
A cidade de Sobradinho, localizada no sentido nordeste, instalada ao longo da rodovia que liga Brasília a Salvador e Fortaleza, usufrui de sua visibilidade. Segundo a CODEPLAN, Sobradinho foi fundada para abrigar a população vinda para a construção de Brasília e para o desenvolvimento agrícola da região, por meio de uma ocupação rural (COMPANHIA DE PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL, 2019g). Considera-se que seu nome tem origem em um sobrado (casa com dois pavimentos) de controle. Posteriormente, o nome Sobradinho foi dado ao ribeirão que passava na fazenda onde estava localizado. Nota-se aqui a predominância da habitação unifamiliar, caracterizada por casas geminadas e condomínios fechados, com lotes maiores e casas mais espaçadas, além do comércio local e edifícios de uso misto.
Segundo a CODEPLAN, o Park Way foi incluído no plano urbanístico de Brasília ainda em 1961. Em suas últimas alterações, Lucio Costa esboçou um projeto de baixa densidade e amplas áreas livres, com o objetivo de constituir o “cinturão verde” do Plano Piloto. A Região possui uso exclusivamente residencial, com lotes de grandes dimensões, condomínios fechados e espaços destinados a eventos (COMPANHIA DE PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL, 2019f).
Samambaia é um exemplo da urbanização tardia, que reproduz um modelo de ocupação excludente, com consequências indesejáveis para a malha urbana e para o cotidiano de moradoras e moradores. Brito (2009, p. 168) explica que, “nos primeiros anos da década de 80, voltaram a ser incluídos novos assentamentos urbanos no aglomerado de Brasília, o que não ocorria desde 1970, após a locação de Ceilândia”. Como parte dessas obras aconteceu em terras fronteiriças ao quadrilátero da Capital, ocorreu um incremento a mais para a urbanização dessa região bastante estimulada pela intensa migração para seus domínios, fortalecendo a integração de municípios vizinhos ao complexo urbano de Brasília. Ceilândia e Samambaia formam uma região comercial e industrial, mais popular e movimentada.
A partir dos anos de 1980 as expansões avançaram, fruto também da iniciativa privada. Brito (2009, p. 169) afirma que começou a despontar, no cenário da expansão em ampla escala, os parcelamentos privados destinados à construção de condomínios, a maioria volta para as classes de renda média-alta, ocupando território agrícola da Capital. Esse é o caso de algumas áreas nobres, como o Park Way e o Jardim Botânico (COMPANHIA DE PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL, 2019c; 2019f).
Como consequência da falta de planejamento, é possível perceber que até mesmo áreas de elevado poder aquisitivo, como o Park Way, não possuem, até 2021, sistema de esgoto, além das documentações de muitas habitações. Brito reitera essa avaliação, ao afirmar: “[...] Além dos ajustes legais necessários para regularizar a posse, toda a urbanização surgida nesses moldes ocorreu sem obra de urbanização especialmente no tocante ao saneamento. [...]” (2009, p. 177).
Philippe Panerai (2006, p. 179) reconhece, em sua crítica à cidade de Brasília, que mesmo tendo grande semelhanças entre si e parecerem iguais, cada cidade-satélite “[...] possui sua própria história e caráter, cada uma nos ensina alguma coisa sobre a cidade.” Pesquisas mais recentes mostram os desafios que se colocam ao trabalho de historiografia e crítica sobre a urbanização brasiliense, indicando a necessidade de ampliar e aprofundar a leitura sobre a documentação, introduzir a produção de cartografias críticas e aumentar a capacidade de escuta das populações que foram alijadas ou marginalizadas dentro deste mesmo processo de urbanização.
referências
BRITO, Jusselma Duarte de. De Plano Piloto a metrópole: a mancha urbana de Brasília. 2009. 346 f. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de Brasília, Brasília, 2009. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/3970 | Acesso em: 21 dez. 2021.
COMPANHIA DE PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) 2018 – Ceilândia. Brasília: GDF, 2019. Disponível em: https://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Ceilândia.pdf | Acesso em: 21 dez. 2021.
COMPANHIA DE PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) 2018 – Gama. Brasília: GDF, 2019. Disponível em: https://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Gama.pdf | Acesso em: 21 dez. 2021.
COMPANHIA DE PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) 2018 – Jardim Botânico. Brasília: GDF, 2019. Disponível em: https://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Jardim-Botânico.pdf
| Acesso em: 21 dez. 2021.
COMPANHIA DE PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) 2018 – Lago Norte. Brasília: GDF, 2019. Disponível em: https://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Lago-Norte.pdf | Acesso em: 21 dez. 2021.
COMPANHIA DE PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) 2018 – Lago Sul. Brasília: GDF, 2019. Disponível em: https://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Lago-Sul.pdf | Acesso em: 21 dez. 2021.
COMPANHIA DE PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) 2018 – Park Way. Brasília: GDF, 2019. Disponível em: https://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Park-Way.pdf | Acesso em: 21 dez. 2021.
COMPANHIA DE PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) 2018 – Sobradinho. Brasília: GDF, 2019. Disponível em: https://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Sobradinho.pdf | Acesso em: 21 dez. 2021.
DERNTL, Maria Fernanda. Além do Plano: a construção das cidades-satélites e a dinâmica centro-periferia em Brasília. In: Anais do XIV SHCU. Cidade, Arquitetura e Urbanismo: visões e revisões do século XX. São Carlos, IAU-USP, 2016. Disponível em: http://www.iau.usp.br/shcu2016/anais/wpcontent/uploads/pdfs/37.pdf | Acesso em: 21 dez. 2021.
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