glossário
UTOPIAS URBANAS
A fim de atingir o perfeito desenho social, a maioria dos utopistas formula, simultaneamente, um novo habitat e, invariavelmente, uma nova cidade. [...]
Ricardo Trevisan, Cidades Novas, 2020. [p. 49, grifo do autor]
[...] É a tomada da cidade como criação principal que para nós define uma utopia urbana. Utopias urbanas são as invenções que tomam o urbano como ambiente/criação essencial, são expressões críticas focadas em concepções espaciais, na invenção de cidades que não existem, obras que constroem não lugares. [...]
Adriana Caúla, Trilogia das Utopias Urbanas, 2019. [ p. 43a-44a ]
Luna Catrina Pontes Nascimento
Matheus Thierry Fonseca Alkmin
[ jun. 2021 ]
remissivos
Embora verbetes de dicionários tendam a ser mais generalistas e não abordar termos de áreas específicas, é comum encontrar, nas acepções da palavra utopia, sua vinculação a questões urbanas. Isso ocorre devido ao próprio surgimento da palavra, em latim, com a publicação do livro Utopia, de Thomas More, em 1516. Não há, exatamente, um consenso com relação à formação da palavra, mas entende-se que se trata de um neologismo criado a partir dos termos de origem grega eutoπia e utoπia que significam, respectivamente, melhor lugar e lugar nenhum (CAÚLA, 2019; PESSOA, 2016). Deixando de lado as questões da origem do vocábulo, o que interessa para este estudo é a repercussão do termo no sentido de lugar onde tudo está bem. As utopias urbanas se caracterizam, em linhas gerais, como espaços de livre organização espacial, onde seus idealizadores podem expressar seus objetivos e pretensões de forma imaginativa e criativa. Interessa, ainda, entender como se dá a repercussão da ideia de uma sociedade ideal, harmônica e estável que se constrói como oposição a uma situação vivida, como foi o caso do texto inaugural de More, que tinha como pano de fundo a situação problemática vivida na Inglaterra de sua época.
A Utopia de More influenciou muitas obras literárias com a mesma temática desde o Renascimento, bem como outros campos (CAÚLA, 2019; CLAEYS, 2013; HARVEY, 2006). Um momento singular de reinvenção das utopias, bem como da ampliação de seu interesse para a dimensão urbana, se deu a partir da Revolução Industrial. Como afirmou Françoise Choay, a “sociedade industrial é urbana” (CHOAY, 1992) e, já na primeira metade do século XIX, a situação crítica em que se encontravam as grandes cidades demandou a criação de diagnósticos e experiências pioneiras de melhorias urbanas, antes mesmo do surgimento de um campo disciplinar autônomo. Para a autora, as utopias do chamado "pré-urbanismo" serviram de embasamento para a constituição do que viria a ser conhecido como Urbanismo enquanto saber técnico, científico e prático. As desafiadoras condições econômicas, políticas e sociais desafiadoras que condicionam esse campo, no entanto, não impediu que ele cumprisse, igualmente, um papel mais imaginativo e utópico.
Numa visão mais ampla sobre o tema, Richard Noble (2009) caracteriza as utopias urbanas como um modo de ver o mundo melhor que só cabe na imaginação. Dessa forma, as utopias serviriam como um impulso para as transformações sociais e políticas. Por serem comuns no Ocidente, as utopias construídas também nos instigam a pensar nas implicações e possíveis erros que podem ser contornados para idealizar novas possibilidades aprimoradas. Por esse motivo, na concepção de Noble, elas conseguem unir diferentes áreas e elementos para projetos colaborativos que visam a mudança social. Não é de espantar, como apontado Trevisan, que elas “[...] aparecem mais regularmente em períodos de transição e em épocas de grandes incertezas [...]” (TREVISAN, 2020, p. 48), impulsionando a criação de modelos de cidades. Tal visão sobre as utopias urbanas, como regras para um mundo melhor, é uma forma de pensar a realidade livremente, idealizando uma sociedade mais harmônica a fim de negar ou superar questões do contexto vivido. Estão na contramão das distopias urbanas, que se caracterizam por serem cidades também imaginárias e não existentes, mas de caráter pessimista, que usualmente especulam sobre as consequências de problemas no presente que indicam um futuro problemático (CAÚLA, 2019; SARGENT, 2005).
Ampliando a perspectiva histórica (CLAEYS, 2013), entende-se que as utopias urbanas – ou, para ser mais preciso, o conjunto de representações ou prescrições sobre sua configuração espacial – existem como um impulso humano de pensar o irreal para conseguir alcançar o real. Na Grécia Antiga, Platão teorizou sobre cidades e sistemas políticos ideais; no Renascimento, as mudanças de paradigmas sociais e incertezas mundanas culminaram em uma intensa produção de obras literárias e arquitetônicas sobre as utopias, entre elas as cidades ideais; a própria Revolução Industrial impulsionou o pensamento de novas formas de cidade; com o Modernismo arquitetônico, expandem-se as propostas de cidades planejadas com caráter utópico. Essa capacidade humana perdura até os dias de hoje, podendo ser constatada em concursos de arquitetura e urbanismo que fomentam apresentam projetos que não consideram, como prioridade, sua viabilidade construtiva. De forma inusitada, como propõe Barbara Freitag (2001), também podem ser entendidas como utopias a concepção de alguns documentos urbanos, como o Estatuto da Cidade, que possui premissas utópicas em conjunto com diretrizes mais práticas, como a garantia ao “direito a cidades sustentáveis” e ao “pleno desenvolvimento das funções sociais das cidades”.
A despeito do grande interesse que despertam hoje, as utopias urbanas nem sempre estiveram cercadas apenas de defensoras e defensores. Isso ocorre, por exemplo, porque grande parte desses projetos utópicos nunca saíram do papel e muitas das que foram construídas tiveram alterações do desenho original conforme a região e período em que foram implantadas. Outra depreciação muito comum vem do entendimento das utopias como excessivamente imaginárias e idealistas, que propõem espaços com liberdade imaginativa sem se prenderem a rigores técnicos. Lewis Mumford (1922) discorre sobre isso ao tratar das utopias de escape, visto que as enxerga como um local de devaneio e divagações, como fuga de uma realidade vivida que parece difícil de ser enfrentada. O autor também ressalta as utopias de reconstrução, criadas com o intuito de mudar nossa realidade e satisfazer nossas necessidades sociais. Para além disso, deve ser considerada a historicidade do próprio imaginário utópico e suas recepções cambiantes no tempo. Ideias e preceitos utópicos têm a capacidade de influenciar não apenas seus contemporâneos como também projetos futuros, como é o caso da Cidade-Jardim de Ebenezer Howard, que revolucionou toda a forma de pensar as áreas verdes e a presença da indústria na cidade mdoerna.
A partir de autoras e autores da Arquitetura, Geografia e dos estudos urbanos pode-se atualizar o debate sobre as utopias como ideias intimamente ligadas com o espaço e contexto social em que surgiram. David Harvey (2009) sugere pensar em termos de um “utopismo dialético”, associando as utopias ao espaço e ao tempo em que se inserem, pois desse modo seria possível entender criticamente as motivações e mudanças que cada pensamento utópico propõe. Sem perder de vista uma perspectiva crítica sobre a história das utopias no século XX, Harvey também chama atenção para o urbanismo degenerativo, termo usado para situações em que a materialização das utopias se deu de forma fragmentada e degenerada, tornando-as dissociadas de seu contexto de criação.
Para Denise Pessoa (2006) não há utopia desvinculada da realidade. Difere-se, assim, de Lewis Mumford (1922), que classificou as utopias de acordo com seu critério pessoal, independentemente do vínculo com a sociedade. Entretanto, ao pensar em uma utopia que negue sua realidade ou crie parâmetros muito idealizados para soluções de problemas, a oposição à realidade é uma forma de se posicionar perante o contexto social. Ao oferecer formas alternativas para a situação em questão, a utopia urbana é uma forma de deslegitimar o contexto vigente, sempre direcionando a alguma forma para solucioná-lo, mesmo quando restrita ao campo metafórico e simbólico.
É a indignação, a insatisfação de ver as coisas como são, que leva à criação de uma utopia. O contexto social, quando do surgimento de uma utopia, é sempre de corrupção, abuso de poder e desigualdade social.
[...]
Utopias não devem ser interpretadas como devaneio, surto psicótico ou algo irrealizável. Uma utopia nunca é desvinculada da realidade. Aliás, é a realidade que gera uma utopia e é a utopia que torna o mundo suportável. [...] (PESSOA, 2006, p. 22-23)
Ainda de acordo com a leitura de Denise Pessoa, entendemos que a indignação é uma força geradora das utopias, o que a aproxima do filósofo Ernst Bloch, colecionador enciclopédico destas visões de mundo, que viu na insatisfação sua força motor (BLOCH, 1988). Reafirmamos, por fim, a importância de entender utopias para além de algo irreal, mas como uma ideia fértil para criação humana, repercutindo nas conjunturas urbanas e sociais de cada contexto período histórico, com repercussão até os dias de hoje.
referências
BLOCH, Ernst. The utopian function of art and literature: selected essays. Tradução: Jack Zipes e Frank Mecklenburg. Cambridge; Londres: The MIT Press, 1988.
CAÚLA, Adriana. Trilogia das utopias urbanas. Salvador: EDUFBA, 2019. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/32069/1/trilogia-das-utopias-urbanas.pdf | Acesso em: 21 mai. 2021.
CHOAY, Françoise. O Urbanismo: utopias e realidades, uma antologia. Tradução: Dafne Nascimento Rodrigues. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
CLAEYS, Gregory. Utopia: a história de uma ideia. Tradução: Pedro Barros. São Paulo: SESC, 2013.
FREITAG, Barbara. Utopias urbanas. In: ENCONTRO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA, X, 2001, Fortaleza. Anais... Fortaleza, set. 2001. Disponível em: https://teoriadoespacourbano.files.wordpress.com/2013/01/freitag-bc3a1rbara-utopias-urbanas.pdf | Acesso em: 21 mai. 2021.
FREITAG, Barbara. Teorias da cidade. Campinas: Papirus, 2006.
HARVEY, David. Espaços de esperança. Tradução: Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2006.
MUMFORD, Lewis. The story of utopias. Nova Iorque: Boni and Liverlight, 1922.
NOBLE, Richard (ed.). Utopias. Londres: Whitechapel; Cambridge; Londres: The MIT Press, 2009.
PESSOA, Denise Falcão. Utopia e cidades: proposições. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2006.
SARGENT, Lyman Tower. What is a utopia?. Morus: Utopia e Renascimento, Campinas, v. 2, p. 153-160, 2005.
TREVISAN, Ricardo. Cidades novas. Brasília: Editora UnB, 2020. Disponível em: https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/view/62/48/225-1 | Acesso em: 21 mai. 2021.