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CADERNO de MONTAGENS

2020.2

“Tenho vinte anos e não posso responder...” – assim terminava a redação, em outubro de 1911, do conhecido diário de viagens de um jovem suíço, ele mesmo o responsável por sua publicação, décadas mais tarde, quando gozava de amplo reconhecimento internacional. [1] Nada mais apropriado para a retórica de um arquiteto como Le Corbusier do que a falsa modéstia de quem registra, para si mesmo, a construção de uma trajetória heroica, ainda que essa mesma trajetória também fosse marcada, entre movimentos em direção às alturas do espírito humano, pelo seu interesse na Eugenia e em suas aproximações com o fascismo. [2, 3] Importa, ainda assim, retomar esse documento como parte de certa tradição em registrar, em cadernos de viagem, um processo de formação; onde se deixam impressas as indecisões, reticências e as projeções em direção ao conhecimento que se busca produzir.

Um caderno – ou diário – de bordo diz respeito a um instrumento de navegação, um livro em que são relatadas, dia após dia, as ocorrências mais importantes durante uma viagem de navio ou de avião. Por extensão, acabaram designando os registros de pesquisadores, na forma de cadernos de campo, em que procedimentos, descobertas e reveses da pesquisa científica precisam ser facilmente acessíveis e verificáveis. Interessa, aqui, menos a precisão de navegantes e cientistas stricto sensu. Pode-se trazer como referência, no entanto, a obstinação da personagem d’O Conto da Ilha Desconhecida, que sabe da necessidade de perscrutar, em sua busca pela ilha que ainda não está no mapa, a imaginação e o sonho, esse último um “[...] prestidigitador hábil, [que] muda as proporções das coisas e as suas distâncias, separa as pessoas, e elas estão juntas, reúne-as, e quase não se vêem uma à outra. [...]”. [4]

A possiblidade de desconsiderar a regularidade das distâncias ou intervalos, que o navegante de Saramago encontra no mundo onírico, parece estar presente nos painéis móveis que compunham o Atlas Mnemosyne do historiador Aby Warburg, ou na concepção do Index Musem do biólogo Patrick Geddes, sobre cujas obras Paola Berenstein Jacques vem refletindo para tratar da montagem como forma de conhecimento sobre a cidade e o urbanismo e como operação historiográfica. [5, 6] Dispor lado a lado determinados fragmentos da história, mesmo aparentemente incompatíveis e de naturezas diversas, são uma forma de questionar a nossa relação com o tempo. Recorre-se aqui às reflexões de Jacques, em diálogo com Warburg, Geddes, Walter Benjamin, entre outras e outros: [7]

O pensamento por montagens de tempos heterogêneos ou anacrônicos torna a própria noção de tempo bem mais complexo e menos linear, o que permite pensar também outras formas de narração. Um tempo saturado de “agoras” que se encontram com “outroras" em relâmpagos ou breves lampejos, indicando possibilidades futuras. Trata-se de uma desmontagem também do historicismo, das formas de se pensar e narrar a história baseadas numa simples continuidade ou linearidade histórica como mera sucessão de tempos homogêneos, fatiados em períodos ou estilos.

As montagens se configuram, assim, como um método para empreender outras narrativas, para construir reflexões críticas sobre a Arquitetura e o Urbanismo da atualidade, trazendo para o debate elementos esquecidos, sublimados, deixados à margem ou ofuscados por contextos excessivamente iluminados. As montagens são questionamentos de discursos que reforçam a unidade e a homogeneidade, mesmo aqueles mais alvissareiros, que partem da pluralidade de expressões da produção contemporânea, a exemplo da profecia de estilos da árvore filogenética de Charles Jencks, [8, 9] ou da fantasia do controle no design total de Mark Wigley [10] ou, tanto mais evidente, na pretensa diversidade da bússola orientadora de Alejandro Zaera-Polo. [11] Entende-se, com Manfredo Tafuri, que diferentes estratégias de reunião de fragmentos atravessam, erraticamente, o século XX: tanto na radicalidade das vanguardas Modernistas quanto na melancólica contagem dos destroços de uma guerra perdida, por volta dos anos 1970. [12] Ainda assim, busca-se pensar no impulso que as montagens representam, como ato voluntário de associação de fragmentos “[...] ainda que essa associação não chegue a um acordo com seus próprios condicionantes.” [13]

Cada estudante deverá elaborar, em formato livre, um caderno de montagens ao longo do curso. Com isso, espera-se, poderão conferir sentidos ao conjunto de leituras, debates e obras a que serão apresentados; tornar visíveis as ausências e as zonas de indefinição nos conteúdos; e participar, ativamente, da reflexão sobre a produção atual em Brasília e sobre a própria disciplina Atualidades.

notas

[ 1 ]

LE CORBUSIER. A viagem do Oriente. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

[ 2 ]

LÓPEZ-DURÁN, Fabiola. Eugenics in the garden: transatlantic architecture and the crafting of Modernity. Austin: University of Texas Press, 2018. (Lateral Exchanges).

[ 3 ]

BROTT, Simone. Architecture et Révolution: Le Corbusier and the fascist revolution. Thresholds, Cambridge, n. 41, p. 146-157, Spring 2013. Disponível em: <https://www.mitpressjournals.org/doi/pdf/10.1162/thld_a_00106>. Acesso em: 21 jan. 2021.

[ 4 ]

SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

[ 5 ]

JACQUES, Paola Berenstein. Montagem urbana: uma forma de conhecimento das cidades e do urbanismo. In: JACQUES, Paola Berenstein; BRITTO, Fabiana Dultra (org.). Experiências metodológicas para compreensão da complexidade da cidade contemporânea, IV: memória, narração, história. Salvador: EDUFBA, 2015. p. 47-94. Disponível em: <http://www.laboratoriourbano.ufba.br/pronem/ColecaoTomoIV.pdf>. Acesso em 21 jan. 2021.

[ 6 ]

JACQUES, Paola Berenstein. Pensar por montagens. In: JACQUES, Paola Berenstein; PEREIRA, Margareth da Silva (org.). Nebulosas do pensamento urbanístico, tomo I: modos de pensar: Salvador: EDUFBA, 2018. p. 205-234. Disponível em: <http://www.laboratoriourbano.ufba.br/wp-content/uploads/2019/04/Nebulosas-do-Pensamento-Urbanistico-Tomo-I-Modos-de-pensar.pdf>. Acesso em: 21 jan. 2021.

[ 7 ]

JACQUES, Paola Berenstein. Fantasmas modernos: montagem de uma outra herança, v. 1. Salvador: EDUFBA, 2020. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/33010>. Acesso em: 14 mar. 2021.

[ 8 ]

JENCKS, Charles. Arquitectura 2000: predicciones y métodos. Barcelona: Blume, 1975. (Coleção Nuevos Caminos de la Arquitectura).

[ 9 ]

JENCKS, Charles. The art of prediction. In: LUEBKEMAN, Chris; CASTLE, Helen (ed.). 2050: designing our tomorrow. Architectural Design, Londres, v. 85, n. 4, p. 129-133, July/August 2015. Disponível em: <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/ad.1941>. Acesso em: 21 jan. 2021.

[ 10 ]

WIGLEY, Mark. Whatever happened to total design?. Harvard Design Magazine, Cambridge, n. 5, Summer 1998. Disponível em: <http://www.harvarddesignmagazine.org/issues/5/whatever-happened-to-total-design>. Acesso em: 21 jan. 2021.

[ 11 ]

ZAERA-POLO, Alejandro. Ya bien entrado el siglo XXI: ¿Las arquitecturas del post-capitalismo? = Well into the 21st century: The architectures of post-capitalism?. El Croquis, Madri, n. 187, p. 252-287, 2016.

[ 12 ]

TAFURI, Manfredo. The sphere and the labyrinth: avant-gardes and architecture from Piranesi to the 1970s. Cambridge; Londres: The MIT Press, 1987.

[ 13 ]

Tradução livre do original italiano: "[...] anche se si tratta di un’associazione che non fa ancora i conti con i propri condizionamenti.” TAFURI, Manfredo. Ceci n’est pas une ville. Lotus International, Milão, n. 13, p. 10-13, dez. 1976.

edição 2020/2 - seleção dos trabalhos de estudantes

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