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glossário

FANTASMAGORIA

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Três ângulos para a obra Império (Empire, 1998) de Douglas Gordon. Fotos de Leandro Cruz.  |

A experiência da arte sublinha essa convergência de tempos como um corte, e com ele a construção própria da ideia de fato, não como um real já dado que se reconhece, mas como irrupção de sobrevivências de outros tempos possíveis que se estranha como aparecimento, acontecimento, fantasmagoria, e tudo aquilo que estava ali em latência e ganha sentido e significado numa iluminação presente.

Margareth da Silva Pereira. Gestos Urbanos: Pensar o Tempo. 2017. [ p. 161-162, grifos da autora ]

Isabela Leite Neres Perna

[ jun. 2021 ]

remissivos

Assim como seu significado literal encontrado no dicionário (“Arte de fazer aparecer fantasmas, numa sala escura, com ajuda de ilusões de óptica; [Figurado] Falsa aparência; Conjunto de visões fantásticas, irreais.”) e tendo como sinônimos “Utopia” e “Quimera”, o conceito de Fantasmagoria, teorizado por Walter Benjamin e posteriormente analisado por inúmeras pensadoras e pensadores, também denota uma atmosfera dúbia e contraditória de algo que de fato existe, mas não é real.

Benjamin foi o primeiro a utilizar o termo "fantasmagoria'' como uma categoria crítica para representar o cenário urbano da modernidade, em sua obra inacabada “Passagens” (1927-1940). Nesse contexto, o autor usou como base estudos acerca das dinâmicas sociais emergentes, como os de Karl Marx, György Lukács e Friedrich Engels sobre questões como materialismo histórico e fetichismo de mercadoria. Em sua análise sobre a cidade moderna, Benjamin amplia o escopo marxiano acerca do fetichismo pois busca compreender o fenômeno na escala que ultrapassa a relação forma-mercadoria, fábricas-comércio, atingindo a cultura em toda sua abrangência – o que inclui temporalidade, configuração espacial e comportamentos, dentre outros aspectos.

Benjamin considera fantasmagórica a cultura capitalista – ideologia dominante das grandes cidades – como a própria autoimagem da sociedade, que oculta a memória de como as mercadorias aparecem na vida social, quem as produziu, como e quando a fizeram. Sua análise enfatiza a representação crítica das experiências, derivadas das transformações nas relações e percepções sociais elaboradas pelo capitalismo e seus fantasmas. As fantasmagorias também se manifestam nos locais físicos onde essas mercadorias são apresentadas, como as próprias passagens, descritas por Benjamin como “templos do capital mercantil” (BENJAMIN, 1991, p. 86, 1021 apud CASTRO, 2012, p. 150) e que deram título ao seu livro. Essa nova prática de consumo/ traço cultural organizou os consumidores (sociedade) em uma estrutura de massa, de tal modo que, segundo Julio Castro (2012, p. 151), “A propensão capitalista a transformar tudo em mercadoria desdobra-se na propensão à espetacularização" antecipando as críticas de Guy Debord e de Wolfgang Fritz Haug sobre, respectivamente, a sociedade do espetáculo e a estética da mercadoria.

No livro "Passagens", Benjamin descreve os corredores das lojas de luxo, surgidos em Paris na primeira metade do século XIX, que antecedem e assombram as lojas de departamento e, mais tarde, os shopping centers. Mais do que um registro objetivo desta experiência, como entendemos a partir de Rita Veloso, a cidade benjaminiana é uma construção que se configura como montagem de fragmentos-fantasmas de tempos: “[...] O que ganha relevo ao ler o pensamento-imagem-cidade benjaminiano é sua dupla fundação. Por um lado, fantasmagoria – a imagem que sobrevive no presente a nos dizer o futuro do pretérito de um lugar – e, por outro, fragmento – o que se nos deixa ver nos muitos tempos e idades de uma cidade.” (VELLOSO, 2018, p. 110).

Para além de estabelecerem as relações de comportamento social e de consumo, as passagens parisienses foram cruciais para a percepção por parte de Benjamin do caráter efêmero, ambíguo e fragmentário tanto das coisas, quanto do tempo e espaço. Essas passagens, gloriosas na Paris do século XIX, já pareciam obsoletas nos anos 1920, tornando-se reminiscência de um antigo sonho urbano moderno de futuro (uma coexistência temporal). Para alcançar tais percepções e, consequentemente, teorizar o termo “Fantasmagoria”, Benjamin utilizou uma metodologia oposta ao historicismo dominante, linear e positivista. Trata-se do conceito de “Montagem”, que consiste em uma forma de criação, processo de pensamento e problematização realizada através de recortes, deslocamentos, transposições. Essa metodologia foi amplamente utilizada pelas vanguardas modernas, principalmente pelos dadaístas e surrealistas, como uma resposta ao excesso de cientificidade e progresso acrítico da modernidade (JACQUES, 2020).

Benjamin buscava demonstrar que o passado comportava outros futuros possíveis, e cita esse processo de montagem como uma “desordem produtiva” ou “desordem criadora”. Trabalhando a partir de Benjamin e de outros autores, Paola Berenstein Jacques vem refletindo sobre a prática da montagem como uma forma de conhecimento sobre a cidade e o urbanismo, bem como uma operação historiográfica. Para a autora, o conhecimento heterocrônico, obtido através de coleções de fragmentos, junções de montagens, originam constelações momentâneas cheias de tensões, atreladas a outros tempos.

A prática dessas montagens é, assim, uma forma de utilização daquilo que sobrou, que já parece obsoleto, uma outra forma de usar os restos, farrapos e resíduos da história através de uma remontagem de antigos fragmentos esquecidos. Um processo de mistura temporal, mas também de narrativas e narradores, de tempos e narrações heterogêneas, um processo de montagem que forma também uma série de polifonias. Um procedimento crítico, uma desmontagem a partir da justaposição de fragmentos distintos, a partir de suas diferenças. [...] (JACQUES, 2020, p. 376)

referências

BENJAMIN, Walter. Das Passagen-Werk. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften, Bd. V. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991.

CASTRO, Júlio Cesar Lemes de. Fetichismo e fantasmagoria no mundo do consumo. ALCEU, Rio de Janeiro, v. 13, n. 25, p. 144-153, jul./dez. 2012. Disponível em: http://revistaalceu-acervo.com.puc-rio.br/media/artigo12_25.pdf | Acesso em: 18 mai. 2021.

JACQUES, Paola Berenstein. Fantasmas modernos: montagem de uma outra herança, v. 1. Salvador: EDUFBA, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/33010 | Acesso em: 18 mai. 2021.

PEREIRA, Margareth da Silva. Gestos urbanos: pensar o tempo. In: BRITTO, Fabiana Dultra; JACQUES, Paola Berenstein (org.). CORPOCIDADE – Gestos urbanos. Salvador: EDUFBA, 2017. p. 150-171. Disponível em: http://www.corpocidade5.dan.ufba.br/wp-content/uploads/livro/007.pdf | Acesso em: 18 mai. 2021.

REBUÁ, Eduardo. Mirantes dialéticos: estado de exceção, fantasmagoria e cultura capitalista. Marx e o Marxismo: Revista do NIEP-Marx, Niterói, v.7, n.12, p. 127-155, jan./jun. 2019. Disponível em: https://www.niepmarx.blog.br/revistadoniep/index.php/MM/article/view/303 | Acesso em: 18 mai. 2021.

VELLOSO, Rita. Pensar por constelações. In: JACQUES, Paola Berenstein; PEREIRA, Margareth da Silva (org.). Nebulosas do pensamento urbanístico, tomo I: modos de pensar: Salvador: EDUFBA, 2018. p. 98-121. Disponível em: http://books.scielo.org/id/8synr/pdf/jacques-9788523220327.pdf | Acesso em: 18 mai. 2021.

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