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glossário

DISTOPIA URBANA

Distopia Urbana.png

  Sob a Radiosa, o Exodus! – montagem dos autores. Por debaixo da Cidade Radiosa (1930), de Le Corbusier, emerge a distopia de Exodus, ou Os Prisioneiros Voluntários da Arquitetura (1972), de Rem Koolhaas, Madelon Vriesendorp, Elia Zenghelis e Zoe Zenghelis.  

O surgimento da distopia urbana durante a segunda metade do século XIX coincidiu com – e respondeu a – uma explosão de escritos utópicos, tanto ficcionais quanto não-ficcionais, centrados na cidade como um local de perfectibilidade humana. [...] Embora essas distopias inicialmente fossem minoria, tornaram-se, gradualmente, a tradição dominante nas décadas que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, a tal ponto que, hoje, as visões sombrias e agourentas das cidades do futuro superam em muito qualquer alternativa mais otimista.

Rob Latham e Jeff Hicks, “Urban Dystopias”, In: The Cambridge Companion to the City in Literature, 2014. [ p. 163, tradução nossa ]

Lucas Bandeira L. Nascimento

Vitor Ayub

[ jun. 2021 ]

remissivos

A literatura utópica deriva da obra de Thomas More que, para criticar a Inglaterra do século XVI, imaginou uma sociedade que negasse ponto por ponto as mazelas de seu tempo. A crítica de More, ao longo dos séculos, assumiu significados tanto positivos quanto negativos. Por um lado, favoreceu a possibilidade de pensar de forma esperançosa o futuro e, por outro, fomentou pensamentos totalitários, submetendo a vontade de muitos à concepção de poucos ou mesmo de apenas um indivíduo. Visões idealizadas de sociedades futuras deram origem, em contraponto, à eclosão de distopias que são outra forma de crítica, formuladas por uma visão de futuro em que os problemas do presente são agravados. As distopias não são apenas críticas às utopias tradicionais, numa perspectiva filosófica ou moral. No campo da Arquitetura e Urbanismo, em especial, elas se prestaram a fazer uma revisão crítica das aspirações utópicas da Modernidade (GADANHO, 2017).

Uma versão comumente aceita sobre o surgimento do termo “distopia” é atribuída ao filósofo político John Stuart Mill, por conta de um discurso proferido por na Câmara dos Comuns, em 1868. Na ocasião, Mill questionou a política britânica com relação à posse de terra na Irlanda e, utilizando-se da ironia, manifesta sua insatisfação com relação às intenções de outro representante do governo. Ao acrescentar o prefixo “dis-”, que no Grego Antigo remete às palavras “mau” e “anormal”, Mill nomeou aquelas idealizações que seriam excessivamente indesejáveis para serem praticadas, anunciando o papel que as narrativas distópicas teriam mais adiante, como uma crítica à sociedade atual e aos problemas nela enfrentados.

[...] O nobre Lorde acha realmente possível que o povo da Inglaterra se submeta a isso? Permitam-me, como alguém que, tal como muitos dos meus superiores, foram acusados de ser Utópico, parabenizar o Governo por ter aderido àquela agradável companhia. Talvez seja muito lisonjeiro chamá-los de Utópicos; eles deveriam, antes, ser chamados de dis-tópicos ou cacotópicos. O que é comumente chamado de utópico é algo bom demais para ser praticável; mas o que se nos apresentam é ruim demais para ser praticável. [...]. (MILL, 1988, p. 248, tradução nossa)
 

A construção de narrativas ambientadas no futuro, compostas pelo declínio cataclísmico da sociedade e por formas de convivência particularmente autoritárias e perversas, popularizou-se na produção literária desde a primeira metade do século XX (FROMM, 2009); o Cinema, por sua vez, não tardou a seguir os mesmos passos da Literatura e a explorar, através de diferentes formas de representação, os cenários ameaçadores das idealizações deformadas. Em ambos os suportes, a representação de sociedades distópicas foi peça-chave para obras de grande importância, como o romance 1984 (1949), de George Orwell, e o filme Metrópolis (1927), de Fritz Lang, que marcaram suas respectivas esferas e são celebradas e revisitadas ainda hoje.

Em Arquitetura e Urbanismo, o desenvolvimento dessas imaginações toma impulso apenas na segunda metade do século passado, como parte do contexto pós-Segunda Guerra, diante da crise dos ideias puristas do Modernismo. Trata-se, aqui, de uma situação marcada pela desesperança, que inspirou expressões questionadoras da imagem da máquina e da racionalidade. No interior do próprio Movimento Moderno, a postura de jovens arquitetos solapava as crenças otimistas que inauguraram o século XX, entre os quais encontravam-se o grupo do Team X. No campo da crítica e da historiografia, um dos gestos mais significativos veio a partir do livro Projecto e Utopia, publicado por Manfredo Tafuri no começo dos anos 1970 (TAFURI, 1985), em que o autor disseca, rigorosamente, projetos e ambições das vanguardas, expondo a instrumentalidade dessas ideologias em se adequarem à sociedade industrial que, por sua vez, fizeram da arquitetura um instrumento de transformação social inútil diante do desenvolvimento capitalista.

Em meio às agitações políticas da época e à mudança de paradigmas, expressões arquitetônicas do período pós-moderno seguiram como instrumento desta produção, agora com uma tendência maior às distopias. O projeto Exodus (1972), de Rem Koolhaas, Madelon Vriesendorp, Elia Zenghelis e Zoe Zenghelis, é um exemplo paradigmático, pois apesar de ser concebido, aparentemente, como uma utopia, está prenhe de claros aspectos distópicos (KOOLHAAS e ZENGHELIS, 1973; CAÚLA, 2019). A proposta consiste de uma megaestrutura que se instala na cidade de Londres, em cujo interior encontra-se uma espécie de um oásis arquitetônico e de vida urbana cosmopolita, com espaços carregados de valores não autoritários, plurais e horizontalizados. A dualidade de seu investimento crítico está presente em suas intenções gerais e nas entrelinhas. O ambiente urbano que se cria está carregado de alegorias à problemáticas urbanísticas e paradigmas da época, pois, além de ser uma crítica direta às megaestruturas — representantes da fase final do otimismo modernista — a obra em si era carregada de controvérsias, considerando que sua volumetria e esquema geral poderiam ser comparadas às de um campo de concentração.

As sociedades moderna e pós-moderna influenciaram, diretamente, a construção do mundo contemporâneo e, consequentemente, são claras as similaridades entre os cenários onde se desenvolveram as principais distopias urbanas moldadas pelo sistema capitalista neoliberal. Por isso, a produção artística atual ainda flerta as utopias e distopias. Através não só da arquitetura, mas também da literatura, cinema e outras expressões, o urbanismo distópico permanece vivo ao longo de todos esses anos, compondo o plano de fundo de narrativas que revelam o lado nefasto do progresso, da política e do capital.

Por fim, entendemos que as distopias urbanas impõem aos seus agentes reconhecer suas ferramentas como maneiras de remeter não apenas ao passado e ao futuro, mas também ao presente. Assim parece ser a avaliação do crítico Fredric Jameson com relação a outro projeto de Koolhaas, o texto Espaço-lixo, publicado em 2001 (KOOLHAAS, 2010). Para o autor, vários aspectos da ficção científica estão ali presentes, condição em que, “[...] na ausência de um futuro, concentra seu foco numa única tendência fatalista, que se expande sem parar até que a própria tendência se torna apocalíptica e explode o mundo em que estamos presos [...].” (JAMESON, 2013, p. 201).

referências

CAÚLA, Adriana. Trilogia das utopias urbanas. Salvador: EDUFBA, 2019. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/32069/1/trilogia-das-utopias-urbanas.pdf | Acesso em: 21 mai. 2021.
FROMM, Erich. Posfácio [1961]. In: ORWELL, George. 1984. [ed. digital]. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 253-262.

GADANHO, Pedro. Utopia/Distopia: breve história de uma dualidade incômoda. In: GADANHO, Pedro; LAIA, João; VENTURA, Susana (ed.). Utopia/Dystopia: a paradigm shift in art and architecture. Milão: Mousse Publishing, 2017. p. 197-204.

JAMESON, Fredric. Archaeologies of the future: the desire called Utopia and other science fictions. Londres; Nova Iorque: Verso, 2005.

JAMESON, Fredric. A cidade futura. In: SYKES, Krista A. (org.). O campo ampliado da arquitetura: antologia teórica, 1993-2009. Tradução: Denise Bottmann, colab. Roberto Grey. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p. 189-204.

KOOLHAAS, Rem. Espaço-lixo. In: KOOLHAAS, Rem. Três textos sobre a cidade. Tradução: Luís Santiago Baptista. Barcelona: Gustavo Gili, 2010. p. 67-111.

KOOLHAAS, Rem; ZENGHELIS, Elia. Exodus, o i prigionieri volontari dell'architettura = Exodus, or the voluntary prisoners of architecture. Casabella, Milão, n. 378, p. 42-45, jun. 1973.

LATHAM, Rob; HICKS, Jeff. Urban dystopias. In: McNAMARA, Kevin R. (ed.). The Cambridge companion to the city in literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. p. 163-174. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/books/cambridge-companion-to-the-city-in-literature/urban-dystopias/B3C79348683AA6528E739C861076BF5A | Acesso em: 21 mai. 2021.

MEIRELES, Alexander. Distopia. In: REIS, Carlos et. al. (ed.). Dicionário digital do insólito ficcional. Rio de Janeiro: Dialogarts, 17 jan. 2019. Disponível em: http://www.insolitoficcional.uerj.br/d/distopia/ | Acesso em: 21 mai. 2021.

MILL, John Stuart. The State of Ireland. 12 MARCH, 1868. In: MILL, John Stuart. Public and parliamentary speeches: November 1850 – November 1868. Toronto: University of Toronto Press; Londres: Routledge, 1988. p. 247-261.

RIBEIRO, Diego Mauro Muniz. Arquitetura radical em disputa: discussões sobre utopias entre o fim dos anos 1950 e início dos anos 1970. Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 24, n. 1-2, p. 176–203, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistadaufmg/article/view/12608 | Acesso em: 29 mar. 2021.

TAFURI, Manfredo. Projecto e utopia: arquitectura e desenvolvimento do capitalismo. Tradução: Conceição Jardim e Eduardo Nogueira. Lisboa: Presença, 1985.

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